Ia ver a minha mulher, que quebrara a perna esquerda em duas partes e os médicos preparavam-na para a engessar. Eu vira os ossos de perna dela expostos e ensanguentados e a imagem perturbara-me. Os nossos filhos iam vê-la, consoante a disponibilidade dos horários das escolas e os do hospital. O mais novo parecia que ronronava e estava constantemente a afagar-lhe o braço, com a cara encostava ao corpo dela. Contei-lhe das pessoas que aguardavam as sobras dos restaurantes, e de dois amigos nossos que tinham sido presos. Política, está bom de ver. O hospital, o de São Lázaro, estava repleto. Disse-me ela: "Há muito mais velhos do que novos. Os velhos caem em casa. Há alguns novos, mas a maioria é constituída por velhos que caíram em casa." Agora, caía uma chuva miúda e a cidade cheirava a peixe podre. Ouviu-se o silvo de uma ambulância e um grito longínquo. "Daqui a duas semanas, saio, mas vou ficar uns tempos largos com a perna cheia de gesso. E dá--me uma comichão enorme. Tens chegado cedo a casa?" Aproxima-se um médico. Não me liga nenhuma e faz perguntas do estado de saúde da minha mulher. Ela responde-lhe dificultosamente e estou à beira de intervir na conversa. A arrogância dos médicos é como se fora o seu estatuto social. Despeço-me dela e acaricio-lhe o belo rosto com ternura. "Já não sei dormir sem ti", digo. "Vem depressa." A rua é um bloco de gelo, e os eléctricos circulam vazios. As pessoas comem dos caixotes, depois de escolherem as peças mais apresentáveis. Um dos deles olha-me fixamente. Diz: "Nunca viu um homem comer?"
Baptista-Bastos, Correio da Manhã, 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário