terça-feira, fevereiro 11

As 56 línguas do cardeal

O centenário decorrido há pouco da morte do Cardeal Mezzofanti fornece-nos um pretexto para um exame da vida e da personalidade do maior poliglota de todos os tempos.

O astrônomo Zach, dirigindo-se certa vez a Genebra para observar um eclipse, deteve-se alguns dias em Bolonha. Ao partir, anotou no seu diário: “Ia observar um milagre no céu, e a terra me fornece outro fenômeno não menos admirável”. Esse fenômeno era o Cardeal Mezzofanti.

O homem, que no dizer de Byron, “devia ter vivido no tempo da torre de Babel como intérprete universal”, nascera em Bolonha, em 1774, de pais pobres que desejavam fazê-lo artesão. Mas um padre conhecido descobriu no menino aptidões extraordinárias para o estudo, e Gaspare Mezzofanti pôde entrar nas Escolas Pias, depois do Seminário Episcopal, onde em breve se fez notar pela sua memória milagrosa. Bastava-lhe uma única leitura para recitar uma página inteira de São João Crisóstomo. Também desde cedo se consagrou ao estudo dos idiomas. Logo depois de ordenado, vemo-lo em 1797 professor de árabe da Universidade de Bolonha. A vida tranquila que levava permitia-lhe ampliar cada vez mais o seu aprendizado das línguas. Das tempestades da época mal sentiu os efeitos: durante a ocupação francesa, foi afastado por algum tempo da sua cadeira por ter recusado o juramento a Napoleão; mas logo depois os austríacos retomaram a cidade e Mezzofanti voltou a ensinar grego e línguas orientais.

Conservador da biblioteca municipal, reitor da universidade, não tinha outra ambição senão viver a estudar na paz de sua Bolonha, e recusou convites do grão-duque da Toscana, do papa Pio VII, do imperador Francisco, que o chamavam para lecionar em Florença, em Roma, em Viena. Por fim, teve de ceder, em 1832, a um convite de Gregório XVI, que o nomeou conservador da Biblioteca Vaticana e lhe conferiu seis anos depois o título de cardeal. Entre suas atividades em Roma destaca-se a de professor do Colégio da Propaganda, onde se reuniam alunos vindos de todas as partes do globo. Morreu em 1849, sem nunca ter saído da Itália, dentro da qual também fez pouquíssimas viagens: foi a Módena, a Livorno, a Pisa, com o fim único de observar nas sinagogas dessas cidades a entonação do hebraico.

Vida pouco movimentada, sem episódios reveladores. Vida de qualquer prelado erudito, de qualquer sábio ou professor.

Mas o Cardeal Mezzofanti sabia muitas línguas. Há nisso algo de misterioso, de inquietante. Segundo um ditado dos antigos, o poeta Ênio, que sabia três línguas – o latim, o grego, o osco – tinha três almas. Quantas não teria o cardeal?

Interrogado em 1843 por Muravief, conselheiro de Estado russo, sobre o número de línguas que sabia, mandou-lhe em resposta um papel em que o nome de Deus se encontrava escrito em cinquenta e seis idiomas. Segundo outro testemunho, de 1846, a essa altura o cardeal já sabia setenta e oito línguas, sem contar os dialetos. Mas que fossem apenas cinquenta e seis, já não era pouco. Tanto mais que saber uma língua significava para ele falá-la com ótima pronúncia, lê-la, escrevê-la, e, até, compor poesias nela.

Quantas almas não teria o cardeal? Suas obras não nos esclarecem a respeito. Na realidade, só publicou um único trabalho, um elogio em latim de seu professor de grego, Emmanuele d’Aponte. Vários outros escritos, atirou-os ao fogo por julgá-los imperfeitos.

Seu único biógrafo, Manavit, que o conheceu pessoalmente, conviveu com ele e lhe escreveu a vida em 1853, pouco tempo depois de seu falecimento, queixa-se da dificuldade de obter informações sobre o seu biografado, por causa da excessiva modéstia deste. Mas o pequeno material reunido faz-nos supor que fora menos a sede de aventuras espirituais do que a necessidade de aplicar num terreno bastante extenso uma capacidade portentosa, da qual não sabia o que fazer, que impelira Mezzofanti a aprender o sueco após o francês, o armênio após o sueco, o copta após o armênio.

Com tantos idiomas, o cardeal parece só ter possuído uma alma única, serena e pacata, que nem mesmo os estudos do argot parisiense ou os do idioma cigano, iniciados pelo fim de sua vida, chegaram a perturbar. Sua leitura preferida, o Cântico dos Cânticos, nunca lhe sugeriu um pensamento profano. Seus encontros com os poderosos do mundo, que vinham admirá-lo, tão pouco o desassossegaram. Conversando com Nicolau, czar de todas as Rússias, teve bastante presença de espírito para notar alguns solecismos que o imperador cometia falando polaco. Se tinha alguma vaidadezinha – e como poderia não tê-la? –, consistia em passear no pátio do Colégio da Propaganda e dirigir-se a cada aluno na sua própria língua, em palestrar em grego com Byron, em provençal com Manavit, em turco com o embaixador da Porta, em croata com o imperador Francisco I, ou ainda em sustentar uma conversação em várias línguas com muitos interlocutores ao mesmo tempo.

As anedotas que se conservam a seu respeito referem-se todas a essas e outras palestras semelhantes. Em nenhuma delas, fato curioso, atribui-se ao cardeal um motejo, uma pilhéria, qualquer dito chistoso. Terá sido a sua bondade inata que o impediu de manejar essa arma que pode sempre ferir alguém? Ou terá procurado não dizer nada memorável pelo mesmo motivo que o impediu de escrever? Seja como for, foi com extraordinário à propos que escolheu seu lema: “Si linguis hominum loquar et angelorum, caritatem non habeam, factus sum velut aes sonans.” “Se eu falar as línguas dos homens, e dos anjos, e não tiver caridade, tenho-me tornado como o bronze que soa”, palavras de São Paulo aos coríntios. Segundo atestam os contemporâneos, praticou assiduamente, com efeito, a virtude da caridade.

Não foi, decerto, por falta dessa virtude que deixou de transmitir o seu enorme cabedal linguístico à posteridade. Pensara comunicá-lo a um aluno preferido, seu próprio sobrinho, o abade Menarelli, filho da irmã, mas teve a tristeza de perdê-lo ainda moço.

As teorias de Mezzofanti sobre a origem e o parentesco das línguas, conhecidas apenas indiretamente, pois não foram encontrados os trabalhos em que as expôs, não são subscritas pela linguística moderna. A teoria da unidade fundamental de todos os idiomas do mundo está hoje abandonada, e ninguém mais sustenta o parentesco do vasconço com os dialetos do Ural, nem do húngaro com o antigo egípcio.

O que mais nos havia de interessar seria a experiência prática de Mezzofanti na aprendizagem dos idiomas.

É certo que no seu cérebro as diversas línguas estavam metodicamente classificadas – porém como? Talvez se ele não tivesse atirado ao fogo, entre outros, o seu ensaio sobre a filosofia das línguas, ou se encontrássemos outro ensaio dele, perdido, sobre o método de gravar na memória grande número de idiomas, pudéssemos agora aplicar-lhe os segredos.

Mas sabemos apenas que, além de sua prodigiosa memória, o cardeal se valia muito da companhia de estrangeiros, não deixando nunca de aproveitar a passagem de alienígenas por Bolonha e Roma. Os diplomatas assim como os refugiados políticos serviam-lhe igualmente bem aos propósitos, e o número desses últimos não era menor então do que hoje. Além disso, segundo nos informa Manavit, o espírito de Mezzofanti concentrava-se de tal forma nos idiomas que estudava, que em seus sonhos, frequentes, nunca falava outra língua senão a que era, no momento, objeto de seu estudo.

Meditando sobre esse depoimento, chego a pensar que o método escrito do cardeal, mesmo que fosse descoberto por milagre, nos traria pouco proveito. Qual de nós poderia livrar os seus sonhos das preocupações açuladoras desta época tão infensa ao estudo e ao recolhimento? “O cardeal reconhecera que a primeira disposição, e uma das mais essenciais para a gente se entregar ao estudo das línguas, era uma perfeita quietação de espírito e de corpo”. Quem nos dera a paz da biblioteca de Bolonha por volta de 1800!

Paulo Rónai, "Como aprendi o português e outras aventuras"

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