quinta-feira, agosto 6

Saldão de frases desconexas


Se um cronista não sabe quantas árvores há em sua rua e quantos passarinhos moram em cada uma delas, desconfie dele e exija que lhe mostre a carteirinha.

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Para escritores que dizem não saber por que escrevem, o ideal são leitores que não sabem por que leem.

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Narrar a vida, copiá-la, é indigno da arte. Deve o patrão engraxar as botas do criado?

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Serei um morto feliz, se disserem que fui aquele trouxa que morreu pelo amor.

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Quando te vê passar com aquele tipo, minha ameixeira bate na janela tristemente, para me avisar. Mas meu infiel Totó, a quem deste o nome e o caráter, se eu abrisse o portão correria para te lamber as mãos e fazer festinha para aquele teu estropiado amante.

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Talvez venha nos buscar um navio imensamente iluminado que nos levará enquanto estivermos dormindo. Acordaremos numa praia sobre a qual estará gostosamente estendido o sol e, quando saltarmos para as ondas, perceberemos estar livres do respirador e do soro.

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Levar-nos muito a sério como artistas ou qualquer outra coisa é o melhor modo de fazer com que riam de nós e digam frases como: “Quem ele pensa que é? O Shakespeare?”

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Se você me tocasse, a primeira coisa que eu faria seria morrer de gostosura. Depois, não sei.

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No fim, morremos. Essa é a parte mais fácil. Não pressupõe prática nem aprendizado. Difícil é chegar até ela.

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Se um poeta não for abençoado com as aflições de um amor infeliz, deve ter humildade e duvidar de sua vocação.

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Agora, que já há anos não a vê, pensa em várias coisas. Arrepende-se de não tê-la mordido. Para não ser considerado louco, comportou-se sempre como um lorde e nunca lhe perguntou de quem eram aqueles dentes que deixavam tantas marcas nos braços dela e na nuca.

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Que singular prazer desfrutam aqueles substantivos que só se usam no plural. Ah, o nariz empinado das férias, dos óculos, das alvíssaras.

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Que orgulhosos são os verbos intransitivos, que prescindem do sujeito e dos complementos. Que doce arrogância há em chover, por exemplo, ou nevar.

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Gostaria de saber como se sentem os livros antigos quando os chamam de alfarrábios.

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O superlativo é aquele instante único em que uma palavra se sente uma prima-dona.

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Os maus poemas deveriam morrer antes de se completar o primeiro verso.

Raul Drewnick

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