Numa coluna passada, reclamei carinhosamente dos eventos literários em que não se discute literatura, e sim o aparato pedagógico/econômico/político ao redor da questão no Brasil. Poderia acrescentar o quanto há de mistificador nos slogans que tratam a ficção como um prazer, uma “viagem”, um atalho de ascensão social e libertação do espírito. Ler ficção pode ser tudo isso, mas antes e sempre é um exercício sem utilidade prática, em geral um obstáculo à vida social. Na adolescência, traz mais angústia, isolamento, tristeza e revolta que qualquer outra coisa. Na vida profissional, é mais vantajoso se dedicar a textos técnicos e de “aprendizado”.
Cultura é regra, disse Jean-Luc Godard, e arte é exceção. Qualquer incentivo à democratização do saber gira em torno da primeira, e não haveria como ser diferente. Apenas seria interessante, de vez em quando, ouvir alguém falar em larga escala sobre a última: como o prazer extraído da leitura não é necessariamente direto, fluido e emocional. E como pode ser compensador emergir ao final de dezenas ou centenas de páginas hostis como uma espécie de sobrevivente. O primeiro exemplar da chamada “alta literatura” que li foi O nome da rosa. Eu devia ter uns dezesseis anos e fôlego restrito a enredos policiais (me interessei pela obra de Umberto Eco porque era uma história de detetive). É possível que só tenha ido dali para textos de outros gêneros, registros e densidades porque resisti — por estoicismo, orgulho ou vaidade, não importa — ao cabedal de citações em latim e alusões históricas, religiosas e filosóficas sobre as quais não tinha a menor ideia.
Se ler é uma forma de ampliar a visão de mundo, é pobre limitar a experiência ao que, na forma e no conteúdo, com paternalismo ou demagogia, repete o que já sabemos. Por ocasião do lançamento da Granta e da (bem-vinda) Geração subzero, voltou à tona o debate sem muito sentido que contrapõe qualidade literária e entretenimento. Como se uma coisa excluísse sempre, ou não fosse muitas vezes decorrência da outra. De qualquer forma, Hermano Vianna, Raquel Cozer e Francisco Bosco se estenderam com propriedade sobre o assunto, incluindo suas implicações políticas e mercadológicas, enquanto prefiro seguir falando do que sempre será o patinho feio da história: o livro que não é feito para vender, para agradar, para passar o tempo, para dar lição, para render explicações sem fim do autor no Twitter, para virar tese literária ou extraliterária nascida na academia ou na militância antiacadêmica.
É ele, no fim das contas, que mantém a singularidade da ficção escrita, e portanto sua importância, num mundo em que divertir é tarefa cumprida — em geral com mais competência — por séries de TV, cinema, games e assemelhados. Nada contra quem opta por esse caminho ao contar uma história, repito, só não vejo aí superioridade estética ou moral, e nem mesmo despretensão. Na literatura infantil é aceita a regra de não subestimar a inteligência da criança, o que significa não poupá-la de desafios e recompensas proporcionais. No mundo adulto também pode ser assim: o que parece aridez, fragmentação, incoerência, gratuidade e entropia pode ser apenas disfarce do que ainda não se consegue entender numa narrativa. E do que ainda não se sabe que quer.
Michel Laub
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