Tudo começa sempre com um adeus. Esta história principia por um desfecho: o da minha adolescência Aos quinze anos, numa pequena canoa, eu deixava para trás a minha aldeia e o meu passado. Algo, porém, me dizia que, mais à frente, iria reencontrar antigas amarguras. A canoa afastava‑me de Nkokolani, mas trazia para mais perto os meus mortos.
Há dois dias que tínhamos saído de Nkokolani subindo até à nascente do rio em direção a Mandhlakazi, terra que os portugueses chamavam de Manjacaze. Viajávamos com o meu irmão Mwanatu à frente e o meu velho pai na popa. Na canoa seguiam, além dos meus familiares, o sargento Germano de Melo e a sua amiga italiana Bianca Vanzini.
Sem pausa, os remos golpeavam o rio. E tinha que ser assim: conduzíamos Germano de Melo ao único hospital em toda a região de Gaza. O sargento vira as mãos despedaçadas num acidente de que eu fora responsável. Disparara sobre ele para salvar Mwanatu que caminhava à frente de uma multidão prestes a assaltar o quartel defendido pelo solitário Germano.
Era imperioso apressarmo‑nos para Mandhlakazi, onde trabalhava o único médico em toda a nossa nação: o missionário Georges Liengme. Os protestantes suíços escolheram com critério um local para erguer o hospital: junto da corte do imperador Ngungunyane e longe dasautoridades portuguesas.
O remorso pesou sobre mim durante toda a viagem. O tiro desfizera uma boa parte das mãos do português, aquelas mesmas mãos que eu, tantas vezes, ajudara a renascer dos delírios que o afligiam. Os másculos dedos com que tanto sonhara tinham‑se evaporado.
Durante todo o caminho mantive os pés submersos no fundo encharcado da canoa, onde a água havia‑se tingido de vermelho. Diz‑se que morremos por perder sangue. É o inverso. Morremos afogados nele.
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