(...) Acumulo detalhes promissores relativos à viagem que faríamos à Espanha. Ao longo de anos a família me preparou para conhecer a terra deles. Prometeram-me desabrochar corpo e imaginação na terra deles, rústica e amada. Assim, com dez anos, cheguei ao porto de Vigo, Galícia, trazida pelo barco inglês. Já do convés, observei, assustada, familiares e amigos que, lá embaixo, aguardando o desembarque, nos acenavam. Um arrebato digno de receber o imperador da Etiópia e seu séquito.
Tive medo de pôr os pés naquela terra. Ela parecia inóspita e fazia frio. Era novembro, um mês sacudido por rajadas fortes de vento que não se assemelhavam às brisas marítimas da praia de Copacabana que eu deixara para trás. Mas, ao ser enlaçada pelas mulheres robustas que diziam meu nome com um acento gutural que lhes arranhava a garganta, sofri a falta do sol, que se tornara símbolo do Brasil.
Vestidas de negro, essas mulheres tinham-me como o menino Jesus propenso a fazer milagres. Os trajes que levavam, de aparência sinistra, sinalizavam o luto. No caso galego, um luto eterno, porque o mesmo traje servia para prantear vários mortos. Pois, logo que expirasse o tempo de recolhimento e de pesar pelo falecido, elas trancavam o vestido no armário, de onde só sairia para homenagear o próximo defunto.
A caravana familiar, a caminho de Cotobade, era constituída de passageiros e um sem-número de malas e baús. Após vencer a cidade de Pontevedra, cabeça política da região, rumamos em direção da primeira parada, Borela, parte de Cotobade, onde pai, mãe e eu ficaríamos.
A caravana familiar, a caminho de Cotobade, era constituída de passageiros e um sem-número de malas e baús. Após vencer a cidade de Pontevedra, cabeça política da região, rumamos em direção da primeira parada, Borela, parte de Cotobade, onde pai, mãe e eu ficaríamos.
A chuva dificultou os planos de irmos de carro até Porta Carneira, a grande casa de pedra da avó Isolina, cercada de um belo prado. Os pingos de água que inundaram os caminhos não permitiram a passagem dos veículos. A solução encontrada foi colocar as malas e os passageiros nas carroças puxadas pelas vacas que, acostumadas ao sofrimento, nos levariam à casa familiar. Aquelas foram as primeiras vacas galegas que me inspiraram profunda compaixão e que jamais deixei de amar. Tornaram-se seres da minha alma. Sou irmã dessa espécie prodigiosa. Naquele dia de novembro, em pleno inverno, eu reagia à Galícia que me ofertavam. Pensava em que fazia ali uma filha da América, a brasileira ques ó aprendera a viver sob a égide do sol. Eis que vi, antes de subir na carroça, bem à entrada de Borela, e sobre a qual estava eu prestes a cruzar, uma ponte medieval do século XV, de corte românico, revestida de trepadeira. Após a ponte, via-se a capela designada de Nossa Senhora de Lourdes, que me encarreguei agora de restaurar.
À visão da ponte e da capela, estremeci de emoção, sofri um assombro amoroso. De uma intensidade que me obrigou a crer que a minha vida, a despeito dos meus dez anos, era capaz de exprimir emoções amparadas até pela modéstia do verbo. Quando jurei, com as palavras que dispunha então, que amaria aquelas terras galegas para sempre. E é o que faço até hoje.
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