Os livros da casa vão mudar de lugar. Adiei a tarefa prevendo o trabalho que daria movê-los ainda que poucos metros. O espaço é escasso; para cada cinco ou seis exemplares que chegam, outros cinco ou seis vão embora. Preciso ser impiedosa, não posso me apegar. Com as roupas se diz que, passado um ano sem que seja usada, a peça deve ir embora. Com os livros não vale a regra. Um livro pode ser guardado uma vida inteira e ser relido apenas uma ou duas vezes. Ainda assim faz sentido mantê-lo.
Cada exemplar é avaliado. Cora Coralina, livro grande de receitas. Vai ou fica? Cozinho mal -- para que um livro de quitutes? Folheio. Tudo parece tão bom! Bolo de araruta... Sinto uma ternura triste. Minha mãe assava biscoitos de araruta. Araruta não existe mais. Minha mãe não está mais aqui. O sabor da araruta, nem lembro. Leio um dos textos que acompanham as receitas. Como escrevia bem a Cora Coralina! Fala de uma pobreza bem brasileira, que perdura porque não há saída. É a pobreza de antigamente, que a de hoje inclui revolta e cartão de crédito no vermelho. Diz assim: “No tempo do vintém de cobre era uma pobreza tranquila, acomodada, aceita, tácita, nenhuma revolta. Presente o medo de fazer dívida; diziam os experientes: ‘antes dormir com fome do que acordar com dívidas’”. Cora Coralina fica mais um pouco.
Alguns livros vieram de bibliotecas. Os carimbos denunciam o crime. Sou inocente! Este aqui comprei em um sebo de São Paulo. Mistério magazine de Ellery Queen. “Biblioteca circulante”, diz o carimbo no envelope colado na contracapa. Dentro, a ficha. Daquelas em que as bibliotecárias carimbavam a data do empréstimo e da devolução. Coisa pré-informatização. A revistinha é de maio de 1975. A tal biblioteca circulante foi fundada em julho de 1980 (diz o carimbo) e eu comprei em abril de 2000 (está anotado na última página). Nunca li nenhum conto. Nem eu nem ninguém. A ficha está limpa, nenhum empréstimo registrado. Os nomes de Isaac Asimov e Tchekhov não foram suficientes para atrair leitores. Em desagravo aos escritores, exploro o último conto, o único de um autor brasileiro, Plinio Cabral. “A dupla morte do jovem doador”: trágico. A Mistério magazine fica mais um pouco.
A data anotada por mim quando, jovem leitora, comprei o exemplar; o postal da exposição de Brancusi que usei como marcador de páginas; a nota fiscal que me recorda a banca de jornais na estação de trens de Glasgow; os grifos (que agora não me dizem nada), tudo isso dá aos livros um valor maior. Eles carregam a história que o autor imprimiu no papel e a história que a leitora imprimiu no objeto. Por isso são preciosos, são souvenirs, registros das minhas boas intenções nem sempre cumpridas.
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