(...) Das montanhas sopra uma rajada úmida. Do outro lado, ilhas azuis e celestes contemplam as nossas terras; sob aqueles céus serei feliz e com a mesma frequência sentirei saudades de casa. O perfeito representante da minha espécie, o puro viajante, não deveria conhecer esta nostalgia. Eu a conheço, não sou perfeito e também não pretendo sê-lo. Quero saborear a minha nostalgia como saboreio os meus amigos.
(...) Todos nós viajantes somos feitos dessa maneira...A nossa ânsia de errar e vagabundear é, em grande parte amor, erotismo; a metade do romantismo de uma viagem não é outra coisa senão uma esperança de aventura; mas a outra metade é uma necessidade inconsciente de transformar e diluir o erótico. Nós, caminhantes, estamos habituados a albergar desejos amorosos precisamente por conta de seu carácter irrealizável, e aquele amor que deveria pertencer a uma mulher nós o repartimos, brincando, entre povoado e montanha, lago e desfiladeiro, crianças do caminho, os mendigos de uma ponte, o boi de uma pradaria, um pássaro, uma borboleta. Separamos o amor do objeto, o amor em si é suficiente para nós, do mesmo modo que não buscamos o destino na peregrinação, senão unicamente desfrutá-lo, estar a caminho é o que importa.
(...) O fogo apagou, o sol se moveu imperceptivelmente. Hoje quero caminhar ainda um longo percurso. Enquanto guardo as coisas e fecho o meu bornal, recordo uns versos de Eichendorff, que trauteio de joelhos: Logo, tão logo, chegará o tempo sereno / e também eu descansarei / e em cima de mim / sussurrará a bonita solidão do bosque / e nem aqui conhecerei alguém. / Estar a caminho é o que importa.
Sinto pela primeira vez que nestes amados versos a melancolia é também a sombra de uma nuvem. Esta melancolia não é mais do que a música suave da caducidade, sem a qual o belo não nos emociona. Carece de dor. Sigo meu caminho com ela e subo, contente, pelo sendeiro da montanha, o lago encontra-se muito abaixo de onde estou; passo junto do arroio de um moinho, de um grupo de castanheiros e de uma roda abandonada, e penetro no dia azul e silencioso.
Hermann Hesse, “ O Caminhante”
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