Nazaré, 16 de Maio de 1946
É uma história triste, mas eu conto-a, porque uma história triste agrada sempre. No seu sentido mais profundo, a vida é bela e alegre. Todos nós tivemos já a experiência disso milhares de vezes. Provas sobre provas de que não há Primavera sem flores, nem Outono sem frutos. Mas, apegados como estamos à aparência de tudo, esquecemos a voz do profundo, e ouvimos deliciados o som da superfície. Temos o vício da tristeza.― É cega!
A Falca são quatro casas sobre a duna. Há nove pessoas e um burro.
― Mas cose... ― argumentei eu, incrédulo.
― Remenda, ponteia, prega botões, vai à fonte, cozinha...
― E não cai, não se magoa?
― Agora caio! E, se cair, a areia é mole...
A heroína da minha história triste entrava no palco a sorrir. A vida é, de facto, alegre. Eu é que estava, estupidamente, cada vez mais comovido.
― É seu filho, este miúdo? ― perguntei a medo.
― É, sim. E ainda tenho mais dois...
O burro orneou no meio das camarneiras.
― Cegou depois de os ter?
― Não, meu senhor. Foi antes, logo depois de casar. Nunca vi nenhum...
O pequenito era loiro; a mãe morena.
― Deve ser triste... ― arrisquei, cruelmente.
― Se é! Mas a gente acostuma-se a tudo. Há dias que nem me lembro.
A vida sempre a puxar para o lado bom, e eu sempre a puxar para o lado mau.
― Não faz ideia nenhuma da cara deles?
― Só pelo que me dizem...
A mão acarinhava a cabecita com mais ternura. Os dedos pareciam olhos da noite.
― E gosta de viver mesmo assim?
― Essa agora! Quem é que não gosta de viver?!
― É seu filho, este miúdo? ― perguntei a medo.
― É, sim. E ainda tenho mais dois...
O burro orneou no meio das camarneiras.
― Cegou depois de os ter?
― Não, meu senhor. Foi antes, logo depois de casar. Nunca vi nenhum...
O pequenito era loiro; a mãe morena.
― Deve ser triste... ― arrisquei, cruelmente.
― Se é! Mas a gente acostuma-se a tudo. Há dias que nem me lembro.
A vida sempre a puxar para o lado bom, e eu sempre a puxar para o lado mau.
― Não faz ideia nenhuma da cara deles?
― Só pelo que me dizem...
A mão acarinhava a cabecita com mais ternura. Os dedos pareciam olhos da noite.
― E gosta de viver mesmo assim?
― Essa agora! Quem é que não gosta de viver?!
― Cega...
― Tudo é vida. É pena, mas paciência. Antes eu nunca tivesse visto a luz do dia. Não sabia o que era, pronto.
Não disse que antes nunca tivesse tido os filhos.
― E como é que havia de namorar o seu marido, se não visse?
― Também é verdade... Mas ele cá viria. Olha os homens!
― Talvez a não quisesse...
― Queria, queria! O principal estava cá...
Riu-se da brejeirice. Eu é que fiquei sério como um pau. A minha imaginação melancólica não se resignava.
― Também deve ter mágoa de o não ver agora, mudado pelos anos...
― Isso não. Tenho-o sempre novo, que é melhor...
Era escusado. A minha mazombice não se pegava.
― Então, adeus! E fique sabendo que o seu filho é bem bonito...
― Parece que sim. E os irmãos também. Andam à lenha... Este é o mais pequenino. E já cá trago outro...
O sol ia alto, e o dia estava cada vez mais alegre. Mas quê!? A gente gosta da tristeza...
― Tudo é vida. É pena, mas paciência. Antes eu nunca tivesse visto a luz do dia. Não sabia o que era, pronto.
Não disse que antes nunca tivesse tido os filhos.
― E como é que havia de namorar o seu marido, se não visse?
― Também é verdade... Mas ele cá viria. Olha os homens!
― Talvez a não quisesse...
― Queria, queria! O principal estava cá...
Riu-se da brejeirice. Eu é que fiquei sério como um pau. A minha imaginação melancólica não se resignava.
― Também deve ter mágoa de o não ver agora, mudado pelos anos...
― Isso não. Tenho-o sempre novo, que é melhor...
Era escusado. A minha mazombice não se pegava.
― Então, adeus! E fique sabendo que o seu filho é bem bonito...
― Parece que sim. E os irmãos também. Andam à lenha... Este é o mais pequenino. E já cá trago outro...
O sol ia alto, e o dia estava cada vez mais alegre. Mas quê!? A gente gosta da tristeza...
Miguel Torga
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