Não sei — na verdade, não me lembro — se esse era um preconceito comum na época. O que sei é que precisei viver muitos e muitos anos até me entender com a espécie: os quadrinhos não foram parte natural da evolução da minha vida cultural, mas um gosto adquirido.
No começo dos anos 1990, uma história em quadrinhos sobre o Holocausto ganhou o Prêmio Pulitzer, e chamou a minha atenção. Era “Maus”, de Art Spiegelman, um dos livros de maior impacto que já li, figurinhas ou não figurinhas. Parte memória, parte documentário, parte autobiografia, ele puxa o fio da complexa relação do autor com o pai, um sobrevivente de Auschwitz, e traça um retrato devastador da humanidade.
“Maus” não tinha nada de engraçadinho ou de condescendente, nada da leveza que, até então, eu associava automaticamente com histórias desenhadas — ainda que seus personagens sejam ratos, gatos e outros bichos falantes. Não vivi essa experiência sozinha. Um mundo novo se abriu para muita gente que, até então, não fazia ideia do poder das HQs. Não é exagero dizer que todo um mundo novo, aliás, tanto de leitores quanto de autores, cresceu a partir de “Maus”.
Aprendi na época uma expressão então relativamente recente, “graphic novel”, usada para livros, em oposição a revistas, ainda que não sejam necessariamente romances. Aprendi também a procurar as estantes de quadrinhos nas livrarias, que antes não me chamavam a mínima atenção. De lá para cá, gastei mais ou menos o PIB da Bolívia em graphic novels e descobri livros pelos quais me apaixonei para sempre.
“Fun home”, de Alison Bechdel, é um deles: uma visita ao passado e à vida em família, no cenário bizarro de uma mansão vitoriana restaurada nos mínimos detalhes, e perdida numa cidadezinha provinciana da Pensilvânia.
O fun home do título não significa apenas “casa engraçada”; é assim que a família se refere ao seu negócio, a funerária, funeral home em inglês. Há pouca coisa realmente fun nessas memórias doloridas e claustrofóbicas, mas nem tudo é angústia ou desamor. Bechdel revê a sua infância de altos e baixos, o casamento conturbado dos pais, a descoberta da sua própria sexualidade refletindo o homossexualismo reprimido do pai, grandes dúvidas, longos silêncios.
É uma obra-prima.
“Fun home: uma tragicomédia em família” acaba de receber uma nova edição brasileira, traduzida por André Conti e publicada pela Todavia. Procure por ela quando for à livraria da próxima vez; aproveite e passe um tempo na seção das graphic novels, que merece muito mais atenção do que em geral recebe de nós, leitores adultos.
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