Que sei eu a respeito de minhas próprias pernas, pensava então, deixando que elas me levassem para outros caminhos, fora da ficção.
Um ficcionista às vezes precisa saber coisas muito esquisitas. A experiência própria nem sempre ajuda. Passei, por exemplo, a minha infância nos galhos de uma mangueira, chupando manga o dia todo, e não soube responder a um meu amigo, excelente romancista, quanto tempo levava para germinar um caroço de manga.
Bernard Boutet de Monvel |
- Caroço de manga. Que brincadeira é essa
Como insistisse, informaram- lhe que, realmente, havia quem talvez soubesse " um especialista no assunto, lotado num departamento ao qual estava afeto o setor de fruticultura. Discou para lá " mas só conseguiu colher vagos palpites:
- Um caroço de manga. Bem, deve levar um ou dois meses, o senhor não acha
- Não acho nada: preciso saber com exatidão.
- Por quê?
- Bem, porque...
Outros telefonemas, que somente despertavam reminiscências infantis:
- Na minha casa tinha uma mangueira. A manga-espada, por exemplo, se bem me lembro...
- Boa é a manga carlota, aquela pequenina, sem fibra nenhuma... Lá no Norte chamam de itamaracá.
- O caroço. Bem, o caroço, para lhe dizer com franqueza...
Resolveu telefonar para o Gabinete do Ministro:
- Queria uma informaçãozinha de Vossa Excelência.
O ministro não sabia. Que futuro tem um país de economia essencialmente agrícola se ninguém, nem o próprio ministro da Agricultura, sabe informar quanto tempo leva para germinar um caroço de manga.
Volto à minha salamandra. Vejo-a esquiva e silenciosa a deslizar por entre as pedras, quantas pernas. Que futuro tenho eu como escritor, se não sei dizer com quantas pernas se faz uma salamandra. O mundo anda cheio de pernas, e o coração do poeta já perguntou para que tanta perna, meu Deus.
As da salamandra "quatro, ou seis " nada acrescentam ao meu mundo interior, senão a ligeira desconfiança de que acabo tendo quatro.
No entanto, as de uma jovem galgando comigo as pedras do Arpoador, por exemplo, apenas duas, podem sustentar o universo, vertiginoso universo onde as sensações germinam bem mais depressa que um caroço de manga.
Onde se acendem estrelas inexistentes e os astros desandam nas suas órbitas. Onde se abrem abismos de uma profundeza que nem a imaginação do romancista ousa devassar.
Onde vicejam plantas bem mais exóticas que uma mangueira de quintal, em cujas sombras se arrastam seres vorazes e bem mais misteriosos que a salamandra, salamandras...
Fernando Sabino
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