Eu ainda era menina e frequentava um curso de música.
Minha mãe trabalhava de bibliotecária na faculdade de direito e me falava dos grandes escritores que haviam passado por lá, Castro Alves, Tobias Barreto, o que me dava um desejo de viver outras vidas. Na volta de uma das aulas (ela sempre ia me pegar na escola), passamos em frente a uma loja de móveis usados, dessas cheias de quinquilharias. Num canto, sob umas cadeiras, estava um piano branco, de um branco encardido. Eu olhei para ele. A mãe também. Paramos na calçada. Alguém esbarrou na gente. Entramos na loja e coloquei a mão nele como quem toca a imagem de um santo. Na infância, a gente se apega mais aos objetos. Apareceu um homem magro e com roupas largas — devia vestir peças que comprava de segunda mão. Ele não disse um a. Até hoje gosto de vendedores discretos, que me olham com carinho e respondem às perguntas com voz baixa, educadamente, sem querer vender nada. Ficamos os três em silêncio, como se estivéssemos rezando. A mãe perguntou se podia ver melhor o piano. Eu já identificara o fabricante — a casa Pleyel & Lion & Cia. Ter um objeto de Paris, mesmo comprado numa loja de usados, era realizar um sonho. O homem magro tirou as cadeiras de cima do meu piano — sim, eu sabia que ele seria meu —, arrastou vários móveis e o deixou bem no meio do corredor. O piano tinha pés torneados, detalhes em metal e dois pedais. Não era grande, por isso se ajustava à nossa vida. O vendedor trouxe uma banqueta com o assento reencapado de veludo envelhecido e olhou para mim. Eu me sentei, abri o tampo, coloquei os dedos sobre o marfim amarelado, mas não apertei.
— Quanto o senhor está pedindo pelo piano? — minha mãe perguntou.
Tive uma crise de taquicardia. A garganta ficou seca. Meus olhos se encheram de água. Mas não chorei. Esperei a eternidade daquela resposta, pois ele foi até a sua mesa, uma mesa antiga coberta de coisas também para vender, e pegou um caderno, onde devia anotar os preços. Pensou uns segundos e disse, ainda com lentidão, o valor e o número de vezes em que ele podia parcelar.
Eu sabia que era muito dinheiro para nós.
Minha mãe engravidara de um amigo, que foi embora antes de receber a notícia. Isso ainda era um escândalo na década de 1970, mas ela tinha o seu emprego e queria um filho. Nunca me senti órfã, embora desejasse uma presença masculina em casa. A mãe então disse que ficaria com o piano. Gostei de ela não ter discutido o preço, isso me faria sofrer com a possibilidade de perdê-lo. No mesmo dia, o piano entrou em nosso apartamento na rua do Hospício. Colocamos a mesa de jantar encostada em uma das paredes, para que ele tivesse um espaço só dele.
Quando minha mãe chegava do serviço, e principalmente se vinha cansada ou contrariada com algo, eu corria para o piano e tocava as músicas aprendidas na escola. Ela cozinhava ao som de Bach, Mozart, Villa-Lobos. Devíamos ser malvistas no prédio. Quase ninguém nos visitava, e ficávamos ali com nossa mania musical. Minha mãe não entendia nada de música. Nascera na roça, vindo cedo para o Recife. Daí engravidou, parou os estudos e teve a sorte de ser contratada pela universidade.
Não cursei direito, mas odontologia. Mesmo na época da faculdade, eu não deixava de tocar e passava dos dentes estudados o curso para as teclas de marfim. Elas estavam precisando de um clareamento. Quando comecei a atuar na profissão, achei que não sobraria tempo para o piano, que se tornara apenas um hobby. Mas, nos dias de maior desânimo, ia até ele e tocava. Minha mãe parava o que estivesse fazendo para me ouvir. Ganhei algum dinheiro e comprei um apartamento. Decidimos nos desfazer de todos os móveis velhos. Só levamos o piano, porque o piano não era um móvel.
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