Capas das edições em língua inglesa de Memorial de Aires, Dom Casmurro e Memórias póstumas de Brás Cubas |
Quase 70 anos mais tarde, esse “interesse excepcional” citado por Gomes poderia ser incluído no famoso capítulo “Das negativas”, de Memórias póstumas, que lista o que não aconteceu. Um ensaio de Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, publicado no mês passado na revista americana The New Yorker, perguntava por que Machado ainda era tão pouco lido nos EUA. Além do ensaio de Moser, outros textos sobre Machado apareceram na imprensa americana nas últimas semanas por ocasião da publicação de The collected stories of Machado de Assis, uma reunião de 76 contos traduzidos para o inglês pelos britânicos Margaret Jull Costa e Robin Patterson. A editora W. W. Norton & Company, responsável pela publicação das Collected stories, não divulgou a tiragem do livro, mas informou que os editores “estão muito contentes — mais do que contentes, na verdade — com a recepção do livro nos EUA”.
O aplauso da imprensa americana reavivou o desejo expresso por Gomes nos anos 50: será que agora os estrangeiros acordam para o talento de Machado? “Há poucos dias, vi uma coisa insólita na London Review of Books: um retrato de página inteira de Machado e capas de livros dele, inclusive das Collected sories”, disse o britânico John Gledson, tradutor do estudo Dom Casmurro e autor do estudo Machado de Assis: impostura e realismo. Em agosto, Machado foi eleito o autor do mês pela prestigiosa revista literária britânica. “Trabalho com a obra de Machado desde os anos 80 e ele nunca teve esse tipo de destaque na Inglaterra, onde se publicam traduções dele esporadicamente. A tradutora das Collected stories tem uma ótima reputação, o que me dá esperança de que ela ajude a reputação de Machado em inglês.”
A tradutora Margaret Jull Costa resolveu aprender português depois de assistir ao filme Orfeu negro. “Quando eu menciono Orfeu negro, os brasileiros suspiram e reviram os olhos, mas, para mim, aos 20 anos, o filme pareceu exótico e comovente. Eu adorei a musicalidade da língua. O sotaque carioca foi o que despertou meu interesse”, contou Costa, que é uma celebrada tradutora de autores portugueses e espanhóis, como Eça de Queirós e Javier Marías. Além de Gledson, outros machadianos ouvidos por ÉPOCA elogiaram o trabalho de Costa. “Eu adoro Machado desde que estudei português e espanhol na Universidade de Bristol. Adoro a voz narrativa lúdica e inteligente e o olhar afiado sobre o absurdo da vida, que é um traço muito inglês dele, penso eu”, afirmou Costa. Ela convidou Robin Patterson para se juntar à tradução dos contos. “Estamos muito felizes com a recepção das Collected stories e esperamos que a tradução ajude a popularizar Machado. Ele tem muito a dizer ao leitor contemporâneo de qualquer país”, disse Patterson. “Planejamos traduzir Memórias póstumas, começando no ano que vem. Há algumas edições em inglês, mas achamos que é hora de uma nova tradução.”
O primeiro a investir na internacionalização de Machado foi ele próprio. Machado se empenhou para que seus livros circulassem em Portugal e tentou convencer um editor a traduzi-los para o alemão. “Não tereis nada a ganhar ao ser traduzido para o alemão”, desencorajou o editor. Machado viveu para ver duas traduções para o espanhol de romances seus: uma edição uruguaia de Memórias póstumas, de 1902, e uma argentina de Esaú e Jacó, de 1905. Um pequeno “boom machadiano” tomou o mundo anglófono nos anos 50, quando William L. Gordon e Helen P. Caldwell publicaram, respectivamente, traduções de Memórias póstumas e Dom Casmurro. Caldwell, aliás, foi a primeira intelectual a defender a honra de Capitu. No livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis, Caldwell recupera as referências shakespearianas de Dom Casmurro para argumentar que Capitu não traíra Bentinho, um dos mais célebres mistérios literários.
Ainda nos anos 40, num esforço para popularizar a literatura brasileira no exterior, o Instituto Nacional do Livro (INL) encomendara uma tradução de Memórias póstumas para o inglês a Edward Percy Ellis, um missionário protestante britânico que vivia no Rio de Janeiro e não tinha nenhuma experiência como tradutor. A tradução foi entregue em 1949, mas só foi publicada em 1955, quando a versão de Memórias póstumas de Grossman já havia conquistado os leitores anglófonos. A edição patrocinada pelo INL foi localizada recentemente pela americana Flora Thomson-DeVeaux, doutoranda da Universidade Brown, que também prepara uma nova tradução de Memórias póstumas. Thomson-DeVeaux descobriu que o chefe do setor de publicações do INL frequentava a igreja de Percy Ellis — um exemplo das relações de compadrio tão bem descritas nos romances machadianos. Nos anos 90, apareceram novas — e problemáticas — traduções em inglês. As Memórias póstumas e o Quincas Borba de Gregory Rabassa, tradutor de Gabriel García Márquez e de outros latino-americanos, sofreram duras críticas. Gledson acusou essas traduções de “fatais”, “incompetentes” e “preguiçosas”. Outro tradutor, Robert Scott-Buccleuch, eliminou nove capítulos de Dom Casmurro.
“A internacionalização de Machado de Assis é uma questão eterna”, disse Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira na Universidade Princeton, nos EUA. “Nós, leitores brasileiros, somos um pouco ansiosos, queremos ver Machado, nosso tesouro nacional, reconhecido. Há certo nacionalismo nesse desejo.” Ao lado de Hélio de Seixas Guimarães, professor da Universidade de São Paulo (USP), Monteiro trabalha num volume sobre Machado encomendado pela Modern Language Association, uma prestigiosa associação de professores de literatura que edita livros voltados ao público universitário. Machado será o primeiro autor lusófono a constar no catálogo. “O que eu não sei é se um senhor tão discreto, que viveu no Cosme Velho, às vezes tão hermético e de uma ironia tão fina e etérea, pode pegar fogo no exterior como Clarice Lispector pegou”, ponderou Monteiro.
Para ajudar na explosão machadiana, os resenhistas estrangeiros costumam compará-lo a escritores universais, como Henry James, Anton Tchékhov, Jorge Luis Borges, Italo Calvino... E ressaltam a falta de “cor local” em Machado: nele, não há clichês latino-americanos, como indígenas, exuberância tropical, imaginação delirante ou crítica social explícita. A resenhista do New York Times disse que a “recusa (de Machado) de escrever mais explicitamente sobre a escravidão” é uma “persistente frustração”.
A discussão sobre uma leitura de Machado dissociada do contexto social brasileiro também é notícia velha. Anos atrás, Michael Wood, professor de literatura comparada na Universidade Princeton e autor do prefácio das Collected stories, envolveu-se numa contenda pública com o crítico literário Roberto Schwarz sobre a (im)possibilidade de desprender a literatura machadiana do solo social brasileiro — o que pode afastar o leitor estrangeiro ou informá-lo sobre as idiossincrasias do país, como as complicadas relações raciais. “Podemos ser menos ansiosos em relação ao conhecimento necessário para ler um autor como Machado”, disse Monteiro. “Quando a gente lê Dostoiévski, tem ali um samovar (tipo de bule russo), relações de servidão que a gente não conhece sociologicamente em detalhes, mas a comédia humana também está lá, os personagens são densos. Talvez Machado possa circular no exterior assim como Dostoiévski. Ele é mais pesado, mas pode voar.” Os voos de Machado, no entanto, costumam ser curtos. O “boom” dos anos 50 se repetiu de forma espasmódica nas décadas seguintes, mas Machado continuou restrito a círculos acadêmicos. “A recepção de Machado nos EUA não é uma trajetória crescente”, afirmou Thomson-DeVeaux. “O próprio Grossman achava que Machado nunca seria um escritor lido pelas massas, mas, sim, um remédio para os narcisismos nacionais.” A acidentada trajetória internacional de Machado repete um pouco da trajetória do Brasil, país que acredita que, algum dia, ainda vai decolar. Machado é o “escritor universal” produzido pelas contradições deste país, ambos sempre prontos a ser descobertos pelo mundo.Ruan de Sousa Gabiel
“A internacionalização de Machado de Assis é uma questão eterna”, disse Pedro Meira Monteiro, professor de literatura brasileira na Universidade Princeton, nos EUA. “Nós, leitores brasileiros, somos um pouco ansiosos, queremos ver Machado, nosso tesouro nacional, reconhecido. Há certo nacionalismo nesse desejo.” Ao lado de Hélio de Seixas Guimarães, professor da Universidade de São Paulo (USP), Monteiro trabalha num volume sobre Machado encomendado pela Modern Language Association, uma prestigiosa associação de professores de literatura que edita livros voltados ao público universitário. Machado será o primeiro autor lusófono a constar no catálogo. “O que eu não sei é se um senhor tão discreto, que viveu no Cosme Velho, às vezes tão hermético e de uma ironia tão fina e etérea, pode pegar fogo no exterior como Clarice Lispector pegou”, ponderou Monteiro.
Para ajudar na explosão machadiana, os resenhistas estrangeiros costumam compará-lo a escritores universais, como Henry James, Anton Tchékhov, Jorge Luis Borges, Italo Calvino... E ressaltam a falta de “cor local” em Machado: nele, não há clichês latino-americanos, como indígenas, exuberância tropical, imaginação delirante ou crítica social explícita. A resenhista do New York Times disse que a “recusa (de Machado) de escrever mais explicitamente sobre a escravidão” é uma “persistente frustração”.
A discussão sobre uma leitura de Machado dissociada do contexto social brasileiro também é notícia velha. Anos atrás, Michael Wood, professor de literatura comparada na Universidade Princeton e autor do prefácio das Collected stories, envolveu-se numa contenda pública com o crítico literário Roberto Schwarz sobre a (im)possibilidade de desprender a literatura machadiana do solo social brasileiro — o que pode afastar o leitor estrangeiro ou informá-lo sobre as idiossincrasias do país, como as complicadas relações raciais. “Podemos ser menos ansiosos em relação ao conhecimento necessário para ler um autor como Machado”, disse Monteiro. “Quando a gente lê Dostoiévski, tem ali um samovar (tipo de bule russo), relações de servidão que a gente não conhece sociologicamente em detalhes, mas a comédia humana também está lá, os personagens são densos. Talvez Machado possa circular no exterior assim como Dostoiévski. Ele é mais pesado, mas pode voar.” Os voos de Machado, no entanto, costumam ser curtos. O “boom” dos anos 50 se repetiu de forma espasmódica nas décadas seguintes, mas Machado continuou restrito a círculos acadêmicos. “A recepção de Machado nos EUA não é uma trajetória crescente”, afirmou Thomson-DeVeaux. “O próprio Grossman achava que Machado nunca seria um escritor lido pelas massas, mas, sim, um remédio para os narcisismos nacionais.” A acidentada trajetória internacional de Machado repete um pouco da trajetória do Brasil, país que acredita que, algum dia, ainda vai decolar. Machado é o “escritor universal” produzido pelas contradições deste país, ambos sempre prontos a ser descobertos pelo mundo.Ruan de Sousa Gabiel
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