Não falamos, porém, de como fazer para ler na cama num dia de inverno, quando só o que você quer é passar a noite ronronando debaixo de quatro mantinhas de lã, de preferência na companhia de algum clássico francês.
O elemento central de uma boa leitura na horizontal é o abajur. Não há nada mais determinante do que o estilo e a intensidade luminosa do mesmo — talvez a qualidade do livro, diriam os mais ortodoxos —, e meu sonho sempre foi ter uma modesta (porém significativa) coleção de abajures nos mais diversos formatos, quilowatts, cores, materiais. O sueco Stieg Larsson, por exemplo, é um autor de luzes fortes e vermelhas. Stendhal e Flaubert requerem uma claridade mortiça, amarelada, em tons amadeirados. Os russos a gente lê à luz de velas quando acaba a eletricidade na rua, e Edgar Allan Poe se beneficiaria de um abajur com defeito, que vai falhando e definhando conforme as páginas avançam, até que, lá pelo fim, você não o esteja mais lendo, e sim imaginando. Luz focada de ônibus é para ler aventuras, diários de viagem e expedições com piratas, cerimônias pagãs e escorbuto.
Acionado o abajur, porém, pouco nos resta senão soterrar-se debaixo do edredom e esperar sair de lá vivo.
E qual a posição ideal para ler na cama? De barriga para cima, o mundo parece perfeito até que seus braços e ombros começam a sentir o peso da gravidade. Então você vira de lado, suponhamos, o esquerdo, e prossegue sua leitura da página 77, julgando assim ter encontrado um estado de coisas assaz satisfatório. A página 78, contudo, traz uma inverossímil reviravolta na trama e uma dificuldade: ela se localiza na parte inicial do grosso livro, que você mal começou. Como equilibrar a página 78 aberta quando se está deitado sobre o flanco corporal esquerdo, sendo esta uma folha par e o lado direito do livro, essencialmente ímpar?
A solução, claro, é rolar para o outro lado, mas a satisfação só dura até avançarmos para a folha ímpar novamente. É hora de rolar de volta, e algum leitor agora pode alegar: nós somos intelectuais, não nascemos para competir na corrida do queijo, de modo que, exauridos pelo rolamento infinito, atolamos de barriga e cedemos à controversa posição de bruços. (Nota: pesquisar o que vem a ser etimologicamente um bruço.)
Ler de bruços é confortável apenas nos primeiros três parágrafos — sim, a bruçalidade é assim fugaz e não compensa, embora seja quase impossível resistir-lhe. Finda a primeira oração subordinada substantiva reduzida do infinitivo, o leitor deve escolher entre a fisioterapia e o pilates, pois que a cervicalgia virá — e virá com todas as forças, pinçando os seus nervos e abrindo terreno para a hérnia discal. Por outro lado, ler de bruços é até considerado uma posição de ioga, só que sem o livro.
Engenhocas como a que ilustra este post podem ser uma solução. O Salonpas Linimento e o Profenid têm se mostrado boas opções paliativas. Uma alternativa muito apreciada é ler com as pernas para o alto, apoiadas na cabeceira da cama ou numa parede, de modo a encaixar o livro na barriga e nas coxas, favorecendo ao mesmo tempo a circulação sanguínea e o alongamento da região dorsal, feito um pilates literário. Manter a posição até a página 120 com respiração abdominal alternada, descansar e repetir a operação por mais cinco capítulos.
Vanessa Barbara
PS: Segundo o Dicionário Etimológico Silveira Bueno, bruço — “Tovar explica a expressão por um cruzamento árabe-basco: bus (ar.), beijo; buruz (basco), cabeça. O mais difícil é explicar como é que o árabe se foi cruzar com o basco e como este entrou para o português. Além do que, na loc. “De bruço” não há, nem por milagre, a ideia de beijo, a não ser um beijo dado na terra… Melhor é dizer que até o momento ainda não se conhece o verdadeiro étimo dessa palavra”.
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