sábado, fevereiro 29

Fique à vontade!


O jardineiro sempre estará lá

Todos devem deixar algo para trás quando morrem, dizia meu avô. Um filho, um livro, um quadro, uma casa ou parede construída, um par de sapatos. Ou um jardim. Algo que sua mão tenha tocado de algum modo, para que sua alma tenha para onde ir quando você morrer. E quando as pessoas olharem para aquela árvore ou aquela flor que você plantou, você estará ali. Não importa o que você faça, dizia ele, desde que você transforme alguma coisa, do jeito que era antes de você tocá-la, em algo que é como você depois que suas mãos passaram por ela. A diferença entre o homem que apenas apara gramados e um verdadeiro jardineiro está no toque, dizia ele. O aparador de grama podia muito bem não ter estado ali; o jardineiro estará lá durante uma vida inteira.
Ray Bradbury

Germinação


O vestido vermelho

Em Muanza o chão é muito extenso. Por baixo desse chão há uma nuvem. Essa nuvem engravida todos os anos e gera, de cada vez, um filho que, na nossa língua, se chama “mvura”. Os portugueses chamam-lhe “chuva”.

A minha casa nunca ganhou raiz nesse chão. Mudámos a casa de sítio, mas ela nunca deitou raiz. A minha avô – que sempre conheci cega – esgravatava a areia junto às paredes e proclamava: nada, não germinou. Houve um tempo em que ela chegou a regar as estacas de madeira que suportavam o teto.

Escutávamos o balde a chocar contra as paredes de adobe, ouvíamos as suas imprecações enquanto ela tossia como se pássaros lhe saíssem do peito. Depois, a avó desistiu. – Há outras razões – resmungou. – Os mortos são tantos que roeram a terra. É por isso que a nossa casa não pega. Não pode haver raiz onde deixou de haver chão.

Susa Monteiro

Há muito que traduzo nuvens e chuvas. As palavras da avó eram uma advertência: dentro da guerra em que vivíamos havia uma outra guerra. É por isso que hoje decidi pegar a estrada, afastar-me da desenraizada casa. Sou viúva e o único filho que me sobreviveu há muito que foi para a cidade. Finalmente, eu ia ter com ele, sem saber onde o procurar. Mas havia, ao menos, uma procura. Nessa procura, eu voltava a ser mãe. E ganhava a raiz que faltava à casa e que me faltava na vida.

Na minha aldeia há um ditado: uma mulher que enfrenta sozinha a estrada é uma mulher que está despida. Os homens estão autorizados a fazer com ela o que quiserem. Essa mulher pede para ser castigada. E foi sob o presságio da punição que caminhei pela estrada deserta. Da areia que pisava soltava-se um fumo de miragem. Caminhei até o sol me engolir a sombra. Foi então que, de uns arbustos, saiu um grupo de soldados. Cercaram-me como fazem as hienas a uma gazela. O mais alto deles deu uma volta em redor do meu corpo sem sombra.

– De quem é esta mala? – perguntou entre dentes. – Roubou-a a quem?

Permaneci calada. Estou habituada às perguntas que os homens me fazem. Não querem resposta. Apenas confirmação. Permaneci calada. A minha sentença foi ditada no momento em que nasci.

Aquela mala nascera uns anos antes, o meu falecido marido encontrou-a abandonada nesta mesma estrada. Teria tombado de um dos poucos autocarros que ainda se aventuram por estes lados. Mal chegou a casa, o meu homem abriu a misteriosa bagagem e vasculhou as suas entranhas. No meio dos empacotados pertences havia um vestido vermelho e aquilo era um pano feito para incendiar os olhos.

Pedi-lhe – marido, vamos dar esse vestido ao nosso filho que se vai casar. – Chamei o meu filho e ergui o vestido como um troféu de guerra, uma bandeira sobre a nossa antiga miséria. No momento em que o nosso rapaz, com os olhos cheios, se preparava para receber aquela prenda, o meu marido empurrou-o fazendo com que tombasse desamparadamente sobre a fogueira. As queimaduras foram tão graves que ele ficou coxeando da perna direita até ao dia em que ele fugiu de casa, da aldeia e do destino.

Na altura, ataquei o meu homem aos berros. Erro meu: a raiva ainda me fez mais invisível. Serenamente, o meu marido voltou a meter o vestido na mala, fechou-a com uma corda. Com a mesma corda amarrou a mala ao teto. E avisou-me que não tocasse nunca naquela sua propriedade – Vou vender o que está nessa bagagem e compro uma nova mulher – foi o que ele disse.

Numa tarde de bebedeira, ele partiu para a cidade e deixou a mala em casa. Não se esqueceu. Os homens da minha aldeia podem se esquecer dos filhos. Das suas posses, não. Dias depois, recebi a notícia de que o machimbombo em que ele seguia fora atacado. É o que espero que agora me suceda: que estes soldados me deitem fogo e não reste de mim senão cinzas, as mesmas cinzas que sobraram do meu falecido.

O soldado empurrou-me derrubando-me sobre a areia e enxotando de vez as minhas lembranças. Depois, ele mandou que me despisse. Fechei os olhos para não ver os meus panos tombarem no chão. Quando voltei a abrir os olhos vi que o soldado se começara a despir. Atirou a farda furiosamente para o capim como se o que nele fervesse fosse raiva e não desejo.

De novo, fechei os olhos com tanta força como se não me bastassem as pálpebras. Escutei os passos do militar e pensei – deixou as botas calçadas porque está com medo. Depois, restou um longo silêncio. Entreabri os olhos para surpreender o soldado, inteiramente despido, colhendo o vestido vermelho com a ponta dos dedos. Para minha surpresa, começou a vestir o vestido. Apesar de magro, o militar tinha dificuldade em apertar os botões. A barriga ficou comprimida e o sexo ficou de fora, ao pendurão como uma serpente escura. Sacudiu com vigor o membro e os outros riram-se às gargalhadas.

Quando o militar já se debruçava sobre mim gritei em prantos – Não faça isso, meu filho, que se vai desgraçar.

É que eu hoje saltei a Lua.

Na nossa terra não se fala sobre os sangues. É interdita a palavra como é interdito o corpo da mulher que sangra. O violador ergueu-se atabalhoadamente e avisou os comparsas – meus irmãos, aqui ninguém se pode servir. – O pranto toldava-me a visão e eu chorava apenas para deixar de ver o mundo.

Foi então que chegou um outro soldado. Não lhe distingui o rosto, mas percebi que era jovem, bem mais jovem do que os outros. Desatou a rir quando viu o companheiro vestido de mulher. Parou de rir quando me viu estendida, indefesa. Por um momento, fixou os olhos em mim até ser interrompido pelos berros do homem alto.

– Matamo-la – ordenou o violador. – Dizemos que foram os outros.

– Aqui não, meu comandante. – disse o soldado mais novo, que acabava de chegar. E como se tivesse que se explicar, acrescentou – As mulheres devem ser mortas dentro de casa. Fora só se matam os homens.

– Tem razão – admitiu o comandante. – Leve-a para as ruínas da escola e faça o seu dever.

O soldado jovem empurrou-me por um atalho como se estivesse apressado em cumprir ordens. Eu seguia à sua frente tropeçando nos meus próprios passos. Não via o rosto, não escutava uma palavra do soldado que me ia matar. Chegámos à escola, o edifício era uma ruína, mas tinha mais raiz do que muitas das casas novas da aldeia. O militar colocou-se atrás de mim e pendurou o vestido vermelho sobre o meu ombro como se usasse um cabide. Depois, senti junto ao rosto o disparo. Tombei, apagada do mundo, abraçada pela terra.

Quando reabri os olhos, eu estava dentro do sangue. Passei a mão para afastar um zumbido de mil abelhas e, sem querer, arrastei o vestido vermelho que me cobria o rosto. O soldado colocou-me a mão sobre a boca e segredou-me – Agora, vá-se embora, em silêncio. – E ele se retirou, a arma sobre o ombro. As armas pesam sobre as espáduas dos homens que são bons, pensei. Talvez fosse por causa disso que este pequeno soldado coxeava da perna direita.

– Espere – gritei – Leve o vestido.

Em Muanza, o chão é muito extenso. Por cima desse chão se desenhavam as pegadas desse soldado. Essas pegadas eram as minhas no meu regresso a casa. Começava a chover. E o vestido vermelho se ia descolorindo nos braços do soldado que se afastava todo encolhido por baixo da chuva.

sexta-feira, fevereiro 28

Rumo à lua de mel


As fadas da França

— Acusado, levante-se! — disse o presidente.

Ocorreu um movimento hediondo no banco dos réus incendiários, e algo informe e tiritante veio apoiar-se contra a barra. Era um feixe de trapos, de buracos, de peças, de cordas, de velhas flores, de velhos penachos; por cima de tudo, um pobre rosto fanado, brunido, enrugado, maltratado, em que a malícia de dois pequenos olhos negros cintilava no meio das rugas, como um lagarto na fenda de um velho muro.

— Como se chama? — perguntaram-lhe.

— Melusina.

— Como disse?...

Ela repetiu gravemente:

— Melusina.

Sob o forte bigode de coronel dos dragões, o presidente teve um sorriso, mas continuou impassível:

— Idade?

— Não sei mais.

— Profissão?

— Eu sou fada!...

De espanto, o auditório, o conselho, o próprio comissário do governo, toda a gente, enfim, soltou uma grande gargalhada. Mas isso não a perturbou absolutamente, e com voz frágil, clara e cheia de trêmulos, que subia alto na sala e planava como uma voz de sonho, a velha retornou:

— Ah! as fadas da França! Onde estão elas? Todas mortas, meus bons senhores. Eu sou a última. Não resta mais nenhuma senão eu... Na verdade, é grande prejuízo, pois a França era bem mais bela quando ainda tinha fadas. Éramos a poesia do país, sua fé, sua candura, sua juventude. Todos os lugares que frequentávamos — os fundos dos parques cheios de mataréu, as pedras das fontes, as pequenas torres dos velhos castelos, as brumas dos lagos, as grandes planícies pantanosas — recebiam de nossa presença algo de mágico e de imenso. À claridade fantástica das lendas, viam-nos passar um pouco por toda parte, arrastando as saias num raio de luar, ou correndo pelos prados, na extremidade das plantas. Os camponeses nos amavam, nos veneravam.

Nas imaginações ingênuas, nossas frontes coroadas de pérolas, nossas varinhas de condão, nossos bastões encantados, misturavam um pouco de temor à adoração. Nossas fontes, igualmente, permaneciam sempre claras. As charruas se detinham nos caminhos que guardávamos; e como inspirávamos o respeito pelo que era antigo — nós, as mais velhas do mundo — de um a outro extremo da França deixavam-se as florestas crescerem, as pedras se deslocarem por si mesmas.

Mas o século progrediu. As estradas de ferro vieram. Cavaram-se túneis, entulharam-se os lagos, cortaram-se tantas árvores, que bem depressa não sabíamos mais onde nos metermos. Pouco a pouco, os camponeses deixaram de acreditar em nós. À noite, quando batíamos nos postigos, Robin dizia: “É o vento”, e tornava a dormir. As mulheres vinham lavar roupa nos lagos. Desde então tudo se acabou para nós. Como não vivíamos senão da crença popular, perdendo-a, tínhamos perdido tudo. A virtude das nossas varas de condão esvaiu-se, e, de poderosas rainhas que éramos, transformamo-nos em velhas mulheres, enrugadas, malvadas como fadas esquecidas; com o pão para ganhar e mãos que não sabiam fazer nada, além disso.

Durante algum tempo, éramos encontradas nas florestas, arrastando cargas de lenha seca ou amontoando espigas à beira das estradas. Mas os florestais eram duros para nós, os camponeses nos atiravam pedras. Então, como os pobres que não encontram mais no que ganhar a vida na região, fomos procurar trabalho nas grandes cidades.

Algumas entraram nas fiações. Outras venderam maçãs de inverno, à entrada das pontes, ou objetos religiosos nas portas das igrejas. Empurrávamos diante de nós carrocinhas de laranjas, estendíamos aos passantes ramalhetes de um níquel, que ninguém queria, e os pequenos zombavam de nossos queixos trêmulos, e os sargentos da cidade nos faziam correr, e os ônibus nos atropelavam. Depois a doença, as privações, um lençol de hospital sobre a cabeça... E eis aí como a França deixou todas as suas fadas morrerem. Ela tem sido bem punida por isso!

Sim, sim! Riam, meus caros. Não obstante, acabamos de ver no que se torna um país que não tem mais fadas. Vimos todos esses camponeses gananciosos e sorridentes abrirem suas caixas de pão aos prussianos e lhes indicarem as estradas. Aí está! Robin não acreditava mais nos sortilégios; mas também não acreditava mais na pátria... Ah! se houvéssemos estado ali, nós outras, de todos esses alemães que entraram em França não sairia um vivo. Nossos duendes, nossos feios diabinhos os teriam conduzido pelos caminhos que se afundam na terra. Em todas as fontes puras que levavam nossos nomes, teríamos misturado beberagens encantadas que os teriam enlouquecido; e, em nossas reuniões, ao luar, com uma palavra mágica, teríamos confundido de tal forma as estradas, os rios, e entrançado tão bem espinhos, sarças, carrascais — essas partes baixas do bosque, onde eles iam sempre enroscar-se — que os olhinhos de gato do Sr. de Moltke não poderiam jamais reconhecê-los.
Conosco os camponeses teriam marchado. Grandes flores dos nossos lagos nos teriam dado bálsamo para os ferimentos, os fios da Virgem nos teriam servido de pensos; e, nos campos de batalha, o soldado, ao morrer, teria visto a fada do seu cantão inclinar-se sobre seus olhos semifechados, para lhe mostrar um canto de bosque, um trecho de estrada, alguma coisa que lhe lembrasse a terra natal. É com isto que se faz a guerra nacional, a guerra santa. Mas, ai de nós! Nos países que já não creem, nos países que já não têm fadas, essa guerra não é mais possível.

Aqui a frágil voz delicada interrompeu-se por um momento, e o presidente tomou a palavra:

— Tudo isto não nos diz o que fazia a senhora com o petróleo encontrado em seu poder, quando os soldados a detiveram.

— Eu queimava Paris, meu bom senhor — respondeu a velha, muito tranquilamente. — Eu incendiava Paris, porque a odeio, porque ela se ri de tudo, porque foi ela que nos matou. Foi Paris que enviou sábios para analisarem nossas belas fontes miraculosas, e dizerem exatamente o que entrava de ferro e de enxofre na sua composição. Paris zombou de nós nos teatros. Nossos encantamentos se tornaram truques; nossos milagres, divertimentos; e viram-se tantas caras abjetas ostentarem nossos vestidos cor-de-rosa, nossos carros alados, em meio ao luar e aos fogos de Bengala, que ninguém mais pensa em nós sem rir... Havia pequerruchos que nos conheciam pelos nomes, que nos amavam e nos temiam um pouco.

Mas, em lugar dos belos livros, enfeitados de ouro e de figuras, onde aprendiam nossa história, Paris agora lhes põe nas mãos a ciência ao alcance das crianças, grossos alfarrábios, de onde o aborrecimento remonta como poeira cinzenta e apaga nos pequeninos olhos os palácios encantados e os espelhos mágicos... Oh! sim, estou contente de os ver queimar, vossa Paris... Era eu que enchia as caixas dos incendiários, e eu própria que os conduzia aos lugares adequados: “Vão, meus filhos, queimem tudo, queimem, queimem...”

— Decididamente, essa velha é louca — disse o presidente. — Podem levá-la.
Alphonse Daudet

quinta-feira, fevereiro 27

Viagem a dois


Restos de Carnaval

Não, não deste último carnaval. Mas não sei por que este me transportou para a minha infância e para as quartas-feiras de cinzas nas ruas mortas onde esvoaçavam despojos de serpentina e confete. Uma ou outra beata com um véu cobrindo a cabeça ia à igreja, atravessando a rua tão extremamente vazia que se segue ao carnaval. Até que viesse o outro ano. E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.

No entanto, na realidade eu dele pouco participava. Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca me haviam fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança perfume e um saco de confete. Ah, está se tornando difícil escrever. Porque sinto como ficarei de coração escuro ao constatar que, mesmo me agregando tão pouco à alegria, eu era de tal modo sedenta que um quase nada já me tornava uma menina feliz.

E as máscaras? Eu tinha medo mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara. À porta do meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. Até meu susto com os mascarados, pois, era essencial para mim.

Não me fantasiavam: no meio das preocupações com minha mãe doente, ninguém em casa tinha cabeça para carnaval de criança. Mas eu pedia a uma de minhas irmãs para enrolar aqueles meus cabelos lisos que me causavam tanto desgosto e tinha então a vaidade de possuir cabelos frisados pelo menos durante três dias por ano. Nesses três dias, ainda, minha irmã acedia ao meu sonho intenso de ser uma moça – eu mal podia esperar pela saída de uma infância vulnerável – e pintava minha boca de batom bem forte, passando também ruge nas minhas faces. Então eu me sentia bonita e feminina, eu escapava da meninice.


Mas houve um carnaval diferente dos outros. Tão milagroso que eu não conseguia acreditar que tanto me fosse dado, eu, que já aprendera a pedir pouco. É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino "rosa". Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. Boquiaberta, eu assistia pouco a pouco à fantasia tomando forma e se criando. Embora pétalas o papel crepom nem de longe lembrasse, eu pensava seriamente que era uma das fantasias mais belas que jamais vira.

Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga – talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel – resolveu fazer para mim também uma fantasia de "rosa" com o que restara de material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.

Até os preparativos já me deixavam tonta de felicidade. Nunca me sentira tão ocupada: minuciosamente, minha amiga e eu calculávamos tudo, embaixo da fantasia usaríamos combinação, pois se chovesse e a fantasia se derretesse pelo menos estaríamos de algum modo vestidas – à ideia de uma chuva que de repente nos deixasse, nos nossos pudores femininos de oito anos, de combinação na rua, morríamos previamente de vergonha – mas ah! Deus nos ajudaria! não choveria! Quanto ao fato de minha fantasia só existir por causa das sobras de outra, engoli com alguma dor meu orgulho que sempre fora feroz, e aceitei humilde o que o destino me dava de esmola.

Mas por que exatamente aquele carnaval, o único de fantasia, teve que ser tão melancólico? De manhã cedo no domingo eu já estava de cabelos enrolados para que até de tarde o frisado pegasse bem. Mas os minutos não passavam, de tanta ansiedade. Enfim, enfim! chegaram três horas da tarde: com cuidado para não rasgar o papel, eu me vesti de "rosa".

Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um "destino" é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de "rosa" – mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil – fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.

Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre, mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.

Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim, e numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos, já lisos, de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de oito anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.

quarta-feira, fevereiro 26

Liturgia da leitura


Alexandria recupera o trono do conhecimento

A brisa mediterrânea lembra a Corniche (avenida à beira-mar) do seu esplendor milenar como farol do saber. E também da decadência cosmopolita do século passado, que deixou marca na literatura contemporânea. No mesmo passeio marítimo, a nova biblioteca de Alexandria, inaugurada em 2002 graças a uma campanha da Unesco com financiamento internacional, reviveu a vida cultural de uma cidade egípcia de alma grega. Com oito milhões de livros e 1,5 milhão de visitantes por ano, o complexo de salas de leitura, museus especializados, galerias de exposição e centros de convenções é o astro que irradia a revitalização do espírito da cidade. Ao seu redor, orbitam centros estrangeiros e iniciativas privadas.

Esplanada entre os diversos prédios da biblioteca
“A biblioteca é um centro cultural que vai além do mundo do livro”, afirma Hussein Bassir, diretor do museu de antiguidades do complexo, entre uma coleção de papiros do Livro dos Mortos e mosaicos greco-romanos. “Muitas das peças expostas foram encontradas durante as obras de construção do edifício ou em águas do porto aqui perto. Em cinco minutos, é possível contemplar 5.000 anos de história”, diz este especialista em egiptologia formado com o ex-ministro de Antiguidades Zahi Hawass, que recentemente gerou uma controvérsia sobre a conservação do templo de Debod em Madri, um dos poucos monumentos arquitectônicos núbio-egípcios que podem ser vistos fora do país. Bassir acredita que a tumba perdida de Cleópatra deve estar perto da biblioteca, em algum lugar da enseada marinha, mas descarta que o legendário farol de Alexandria possa ser recuperado.

Distante do caráter desértico da capital, apesar da proximidade, Alexandria tem uma vida cotidiana que flui longe da tensão e do caos da megalópole do Nilo. Provinciana, embora rodeada do halo de história que ainda se desprende da primeira biblioteca, do século III antes de Cristo, incendiada, reconstruída e reduzida finalmente a escombros. Seu renascimento persegue hoje o mesmo objetivo: condensar o saber da humanidade.

Sob a clara luz da nave de arquitetura grega (hipostilo) com colunas papiriformes que acompanham o traçado do edifício – um disco solar inclinado –, a grandiosa sala de leitura (2.500 lugares) oferece a rara harmonia de mostrar as peças a um público da geração pós-Primavera Árabe numa estrutura de design nórdico, com as últimas tecnologias de documentação.

“Estamos avançando rumo à digitalização de todos os volumes da biblioteca”, explica Aiten Bashar, gerente de relações públicas. “Até agora já superamos 28% do índice de textos”, afirma, enquanto mostra na tela a reprodução das lâminas de um belo livro de gravuras da expedição de Napoleão ao Egito em 1798.

O museu de manuscritos e reproduções é o sancta sanctorum da nova biblioteca de Alexandria. Suas salas abrigam a única cópia conservada de um dos 700.000 rolos com textos culturais e científicos que faziam parte de sua coleção clássica.

Em seu catálogo figuram agora as obras do escritor britânico Lawrence Durrell, autor de O Quarteto de Alexandria, que descreve a atmosfera cosmopolita que precedeu a II Guerra Mundial, e Konstantínos Kaváfis, o autor greco-otomano que passou os últimos 25 anos de vida na cidade egípcia. Nas palavras de Mario Vargas-Llosa, o poeta de Ítaca criou com sua obra “outro mundo sobre o sedimento histórico” alexandrino.

A rua onde se ergue a casa que ele habitou – transformada num museu em sua memória – leva hoje seu nome. “O Egito está começando a descobrir Kafávis”, diz na velha construção Stavoula Spanudi, diretora da Fundação de Cultura Helênica de Alexandria. Ao seu lado, Salma Sultán, estudante de Medicina de 24 anos, fica surpresa ao conhecer o poeta que presumivelmente concebeu À Espera dos Bárbaros neste mesmo lugar. “Não estudamos sua obra em nossos livros de texto”, admite.

Também no centro histórico, num antigo palacete italiano, situa-se a sede local do Instituto Cervantes. Sua diretora, a jornalista e escritora Silvia Grijalba, constata o renascimento cultural que a nova biblioteca representou para Alexandria. “Ano passado, inauguramos a biblioteca Jaime Gil de Biedma em nosso centro”, afirma, “e nesta primavera pretendemos organizar um festival de poesia mediterrânea.”

Há apenas uma semana, a professora grega Stella Voutsa concluiu no mesmo palacete um ciclo cultural com seu estudo sobre o paralelismo entre Kaváfis e Gil de Biedma. “O hedonismo, a angústia pela passagem do tempo e a cidade como paisagem em suas respectivas poesias são alguns traços em comum”, resume esta hispanista doutorada em Salamanca. “Vim para reconstruir (...) essas províncias melancólicas que o velho [Kaváfis] via repletas das ‘ruínas sombrias’ de sua vida”, escreveu Durrell no prefácio de Justine, primeiro volume de sua tetralogia alexandrina, um quarto de século depois da morte do poeta.

Incentivo à leitura

 Georgiana Chitac

O lado B de Machado de Assis

Romualdo sonhava ser ministro do Império. Vinha de um lar modesto, mas invejava os bailes feéricos promovidos pelos vizinhos ricos na casa em frente e admirava a farda do ministro que morava na mesma rua. Ainda criança, ouvira de um mestre-escola que o importante na vida era formular, desde cedo, um programa, um plano para se chegar a seus objetivos. Reformulado ao longo dos anos, o programa de Romualdo passava pelo renome literário, que ele mal arranhou com um livro de poemas; pela Faculdade de Direito, que ele concluiu; e pelo casamento vantajoso com uma mulher de família rica, que lhe escapou. Não, Romualdo não chegará nem perto do ambicionado ministério. Sua vida medíocre contrasta com uma extraordinária história de ascensão social no Rio de Janeiro do século XIX: a trajetória do mulato de origem ainda mais humilde, filho de um pintor de paredes e de uma portuguesa, neto de escravos alforriados, que começa a vida profissional como aprendiz de tipógrafo da Imprensa Nacional e, sem jamais pisar em uma universidade, acaba se tornando membro fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, consagrado como a grande figura da literatura de sua época e como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. O próprio Romualdo é uma criação desse autor excepcional — Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). E até nisso o aspirante a ministro ocupa uma posição infeliz: não angariou a fama de um Brás Cubas, de um Bentinho ou de um Simão Bacamarte.

Romualdo é o triste herói de uma peça um tanto obscura de Machado de Assis, o conto “O programa”, publicado na revista "A Estação", em capítulos, entre 1882 e 1883. Esse texto agora está incluído em "Contos (quase) esquecidos" (Filocalia; 440 páginas; R$ 99,90), antologia singular das narrativas breves de Machado de Assis que chegará às livrarias na semana que vem. Organizada pelo crítico e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha, a obra pretende exatamente jogar luz sobre criações menos conhecidas do grande mestre.
“A literatura cumpria, no século XIX, o papel que hoje cabe ao Instagram: era uma escada possível para arrivistas sociais. Mas os personagens de Machado de Assis que se arriscam por esse caminho acabam mal”
Romance, crônica, crítica, poesia, teatro, conto: não houve gênero literário que Machado de Assis não tenha visitado. Mas ele é lembrado e celebrado sobretudo como romancista. Suas obras mais lidas e exigidas em escolas, concursos e vestibulares são "Memórias póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro", os três primeiros romances do que se convencionou chamar sua fase madura (ou “realista”, embora o escritor brasileiro rejeitasse, em uma crítica dura a "O primo Basílio", de Eça de Queirós, a “reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis” que seria praticada pela escola literária do Realismo). Em comparação, o conto parece um tanto negligenciado. Há uma vasta produção a ser explorada no gênero: Machado de Assis escreveu mais de 200 contos, apenas 76 deles recolhidos nas sete coletâneas que publicou em vida, com títulos indistintos como "Papéis avulsos", "Várias histórias" e "Páginas recolhidas". A seleção de Castro Rocha busca, como se anuncia no título, as narrativas esquecidas de Machado de Assis. A coletânea até abre espaço para alguns títulos relativamente conhecidos, como “Um homem célebre” e “Pai contra mãe”, mas “O Alienista” e “Missa do Galo”, dois itens obrigatórios nas antologias, são ausências conspícuas. Dos 30 textos selecionados, 11 não foram coletados em livro pelo autor. Não há contos inéditos, mas todos foram cotejados às publicações originais, para depurar erros. Castro Rocha contou com a colaboração de dois pesquisadores de acervos machadianos, Valdiney Valente Lobato de Castro e Felipe Pereira Rissato.


Os contos foram divididos em quatro eixos temáticos: “Literatura e música”; “Política e escravidão”; “Desrazão”; e “Filosofia”. Em cada uma dessas seções, os textos são apresentados em ordem cronológica, no esforço de mostrar não o gênio já imobilizado no mármore da consagração acadêmica, mas o escritor em processo, que vai aprimorando seu domínio do estilo e da construção de personagens e situações. “O programa” aparece na primeira parte, dedicada às artes, pela circunstância de o desafortunado Romualdo tentar a sorte como poeta — a literatura cumpria, no século XIX, o papel que hoje cabe ao Instagram: era uma escada possível para o arrivista social. Mas os personagens machadianos que fazem da arte sua paixão e profissão não se saem melhor do que o diletante Romualdo. Pestana, de “Um homem célebre”, aspira a ser um compositor de música “séria”, um companheiro de Mozart e Beethoven, mas só consegue produzir polcas populares — Castro Rocha levanta a hipótese de que o personagem seja uma versão musical de José de Alencar, que escrevia romances com a facilidade com que Pestana criava suas polcas. Mais descarnado e cruel é o retrato de João Maria, o pintor pobre de “Habilidoso”: por ouvir desde cedo que tinha habilidade no pincel, ele dispensa todo o treinamento formal — e, claro, fracassa como artista. Nesses contos, como também em “O anel de Polícrates” e “Um erradio”, encontramos variações sobre a ilusão do talento natural, ainda hoje valorizado na cultura brasileira. Como bem nota Castro Rocha, Machado de Assis ocupa o polo oposto desse culto da espontaneidade. O criador de Romualdo, Pestana e José Maria sabe que “o artista deve manter seu talento sob rédea curta, pois lapidá-lo exige controle sobre a facilidade favorecida pelo dom”.

Para “Política e escravidão”, Castro Rocha buscou textos que desmentem o antigo lugar-comum do Machado de Assis descompromissado, que se esquivava de posições sobre as questões de seu tempo — sobretudo sobre a grande questão humana do Brasil Império, a escravidão. A partir do final dos anos 1970, é verdade, firmou-se a interpretação marxista do crítico Roberto Schwarz, que tende a reduzir a obra de Machado de Assis a uma tese sociológica sobre um país escravocrata na periferia do capitalismo — mas, no breve prefácio a essa seção da antologia, Castro Rocha não discute tal linha de análise. A peça mais curiosa aqui talvez seja “Mariana”, que saiu no "Jornal das Famílias" em 1871 — dez anos antes da publicação em livro de "Memórias póstumas de Brás Cubas", considerado um divisor de águas na obra do autor. Trata-se de mais uma história de amor impossível, velho tema do "Romeu e Julieta", de William Shakespeare, que o romantismo quase transforma em lugar-comum. Machado faz aí uma variação significativa: Mariana, a personagem-título, é uma jovem escrava, “uma gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa”, que se apaixona tragicamente pelo filho de sua senhora. Esta é descrita como uma mulher compassiva, generosa. Quando a ocasião o exige, porém, ela saberá lembrar que Mariana, como escrava, lhe deve obediência.

Em um conto bem mais tardio, “Pai contra mãe”, publicado em seu último livro, "Relíquias de Casa Velha", de 1906, Machado de Assis dispensará os arroubos melodramáticos do romantismo para apresentar com maior pungência o caráter violento da escravidão. É a história de um pai de família miserável que, para não abandonar o filho a uma instituição de caridade, sai em busca da recompensa prometida por uma escrava fugida — uma escrava grávida, que teme perder o filho sob os castigos do senhor brutal. Escrevendo uma década e meia depois da Abolição, Machado de Assis parece sinalizar, no choque entre uma escrava e um homem livre mas muito pobre, a persistência dos impasses sociais que o país herdaria da escravidão.

Segue-se a seção devotada à loucura, um tema forte do criador do alienista Simão Bacamarte. O organizador da coletânea prefere o termo “desrazão”: a loucura, diz Castro Rocha, é o oposto exato da razão que os iluministas tanto prezavam, e Machado de Assis fala de realidades mais indecisas e complicadas. O “Conto alexandrino”, saborosa fantasia histórica ambientada no Egito de Ptolomeu, encena a tragicomédia de dois filósofos que buscam a fórmula para manipular vícios e virtudes humanas. Tornam-se cobaias do próprio experimento, bebendo infusões de sangue de rato, na expectativa de que esse líquido insalubre os converta em ratoneiros (ladrões). Ao custo do sofrimento de inúmeros roedores — vale lembrar que a tortura de um rato figura também em “A causa secreta”, conto que não entrou nessa coletânea —, a experiência é bem-sucedida, para a desgraça dos dois pesquisadores. Em “O lapso”, encontramos outro fisiologista empenhado em mudar, com medicamentos, as qualidades morais de um homem. Machado de Assis conhecia bem a ciência de seu tempo e leu a obra de evolucionistas como Charles Darwin e Herbert Spencer. Suas especulações (em geral satíricas) sobre as bases materiais da moralidade humana merecem uma releitura atenta hoje, quando a moderna neurociência busca entender esse antigo problema em novos termos.

Por fim, chegamos aos contos reunidos sob a rubrica “Filosofia” — que, esclarece Castro Rocha, visam corrigir um vício renitente de alguns críticos machadianos, sempre propensos a ver em toda linha do mestre uma confirmação de seu reputado ceticismo. É um equívoco, diz o organizador, imaginar que uma obra ficcional possa desenvolver “algo próximo a uma doutrina filosófica, com sua estrutura conceitual coerente e visão de mundo coesa”. De resto, Machado de Assis tinha um olho acurado e irônico para as contradições internas dos grandes sistemas de ideias. Os personagens de “Conto alexandrino”, na seção anterior do livro, são um bom exemplo: para avançar no conhecimento sobre as raízes da moralidade, não hesitam em maltratar e sacrificar ratos — o que será um preâmbulo para a experimentação em seres humanos.

O filósofo Machado de Assis ensina que boa ficção também se faz com ideias triviais. É banal dizer que a fortuna é passageira e que, se hoje estamos por cima, talvez amanhã estejamos por baixo. O escritor, no entanto, desenvolve esse motivo com cor e leveza líricas em “História comum”, fábula sobre um alfinete que experimenta os acidentes da mobilidade social: começa prendendo o pano de chita à camisa de uma escrava, depois fixa a rosa no vestido de uma jovem que vai a um baile e de lá cai na copa do chapéu de um passante. O conto talvez ganhe uma graça adicional quando se sabe que foi publicado em "A Estação", revista que mantinha uma vigorosa seção literária mas dedicava-se sobretudo à moda. Sim, Machado de Assis, o grande crítico da sociedade brasileira do século XIX, colaborou com uma publicação cujo grande atrativo eram luxuosos figurinos europeus, em gravuras coloridas. Talvez tenha faltado ao programa do malogrado Romualdo essa versatilidade de que só os mestres da ironia são capazes.
Jerônimo Teixeira 

terça-feira, fevereiro 25

Ainda em descanso momesco

Liniers

Samba homenageia 'Carteiro Literário'

A Império da Tijuca, com o enredo enredo “Quimeras de um Eterno Aprendiz”, homenageou o pedreiro Evandro dos Santos, de 59 anos, conhecido como "Carteiro Literário". Semianalfabeto, morador da Vila da Penha, que recolheu 55 mil livros do lixo e criou uma biblioteca comunitária.

Eu, sou a luz no breu
A transformação, o conhecimento
Páginas que enchem de esperança
Mudança escrita no tempo
Vento leva meu desejo de bravura
Quero ser a armadura da leitura e do saber
Mesmo andarilho, estandarte
Retirante da arte
A quimera em você

Pelo rio navega, mero aprendiz
É a fé que me leva pelo meu país
Construindo exemplo, o milagre contemplo
Porque ainda é tempo de final feliz
(É tempo de final feliz)

Nativa ciência
No livro é deusa da inteligência
Em narrativas, emoções
Pequenas tiras entre praças e canções
O samba é sabedoria
No morro da formiga, minha inspiração
Enredo bordado no verde do meu pavilhão

Império
Tantas vezes fui seu companheiro
Hoje, fiel escudeiro no sonho por mais educação
Vamos dar as mãos, seguirmos na luta
Brilha a coroa, isso é Império da Tijuca!
Já clareou um novo dia
Minha arma é poesia

segunda-feira, fevereiro 24

Noite


Empilhando frases

Dizer a palavra gato três vezes talvez não seja nada mais do que isso e não apareça diante de você nada além do que já estiver ali. Mas, se você não é um daqueles toleirões que precisam de três toques para saber se um pedaço de madeira é um pedaço de madeira, talvez dizer uma vez baste.

***

Não lhes digo que até manejando um cotonete a condessa era demoniacamente sensual. Mas também não lhes digo que não.

***

Morto inadimplente é aquele que deve até o terno com o qual é enterrado.

***

O gato morreu há uma semana, mas o sol, como todas as tardes, se demora ainda na poltrona e espera que ele surja de repente de algum canto da sala e se atire sobre ele com aquelas garras brincalhonas.

***

Sempre que arranja um tempinho, o assassino chato volta à cena do crime.

***

Se ainda houvesse musas e eu merecesse uma, ela haveria de ser nordicamente loira e interminavelmente longilínea.

***

O velho poeta vem sonhando com braços e não sabe se, na escala dos pecados, lança isso como uma circunstância atenuante ou agravante.

***

Mas que pouca-vergonha é essa? Pensam que isto aqui é um bordel?, exasperou-se dona Dora, atirando o chinelo nos dois passarinhos acasalados no sofá e sentindo mais do que nunca a ausência da finada gata Beijoca.

***

Durante muito tempo, o sonho de todo patinho feio era tornar-se um cisne parnasiano.

***

Os dois vendedores da livraria ouviram um gemido vindo da estante de poesia. Aproximaram-se e ficaram atentos. “Dá pra acreditar? É este aqui, disse um, puxando um livro. O outro riu: “Antologia de poesia concreta. Como é que pode? Ô cimento chorão.”

***

A viúva, no velório, elogiando o terno do defunto: “É o que ele usou no casamento. Quarenta e seis anos. Olha aqui, não parece novo? Dez prestações no Mappin. Lembram do Mappin?”

***

Procurando uma explicação para sua já incômoda longevidade, ocorreu-lhe, com vergonha e tristeza, que talvez estivesse economizando em demasia suas forças: a última vez na qual beijara uma mulher quase nos lábios tinha sido no velório de um parente arruinado pela crise dos anos 90.

Raul Drewnick

domingo, fevereiro 23

Onde passar o Carnaval


É fácil um coração ansioso enganar seu dono

Existe um programa de televisão chamado Catfish (um novo termo inglês que significa impostor digital) que consiste em investigar e revelar a verdadeira identidade daquelas pessoas que se fazem passar por outras nas redes sociais. Eu o assisti três ou quatro vezes e, em todas as ocasiões se tratava de um caso de amor. O último que vi me deixou espantada: uma norte-americana de 39 anos com uma filha de 18 se corresponde durante nove meses com um cara de 27 (“mas muito maduro para a idade”) que vive em outro Estado. Do rapaz, conhece apenas cinco fotos (ele é, obviamente, muito robusto) e, durante todo esse tempo, não conseguiu encontrá-lo na Internet (alega que está com a câmera quebrada) nem marcar um encontro em algum lugar entre suas cidades. Mas se escreveram muito, conversaram por telefone, certamente fizeram sexo por voz ou por mensagens de texto, falaram em casamento e aparentemente estão apaixonadíssimos. “Nunca amei tanto um homem em toda a minha vida; nunca me entendi tão bem com alguém”, diz a incauta.
É a filha que, sem a cegueira da paixão, considera que a relação é muito suspeita e avisa o programa. A investigação mostra que o suposto bonitão é na verdade uma garota pouco agradável de 31 anos, lésbica e com antecedentes criminais. Há um cara a cara entre as duas, e se diria que a catfish também se autoenganou: alimentava a esperança que sua vítima acabaria se apaixonando por ela. Mas a mulher fica compreensivelmente devastada e sai correndo (além disso, é heterossexual).

Suponho que será difícil que o leitor acredite em mim, mas a vítima não parecia uma boba; simplesmente estava muito necessitada. Que fácil é enganar um coração apaixonado. Ou melhor: com que facilidade um coração ansioso por se apaixonar consegue enganar seu dono. Na verdade, a protagonista do documentário enganou a si mesma.

A paixão é assim, uma quimera. Quanto mais apaixonada uma pessoa estiver, mais distância da realidade tem seu amor ilusório. Cervantes, que já escreveu tudo, nos mostra o ridículo dessas miragens quando fala sobre a loucura de Dom Quixote por sua inexistente Dulcineia, um ser inventado por ele a partir de uma camponesa vizinha, Aldonza Lorenzo. Na verdade, todos nós dulcineamos um pouco ou muito quando nos apaixonamos, como a protagonista de Catfish. Já dizia Platão: amar é dar o que não se tem a quem não é. O que não se tem, porque no impulso incontrolável da conquista nos mostramos adornados por virtudes, abrimos caudas de pavão que não são nossas, fingimos ser melhores do que somos. E a quem não é, porque a dança da corte a fazemos à Dulcinea que inventamos, não ao indivíduo autêntico, aquele ser real que nos empenhamos em não ver.

É por isso que as paixões crescem como cogumelos sob o amparo do desconhecimento do outro. Hoje, com a invisibilidade das redes sociais; mas antes, em tempos mais convencionais, por exemplo, também por causa da distância nos namoros: aqueles casais que não se conheciam sexualmente antes de se casar e que viviam relações pré-matrimoniais muito formais eram a causa e a origem de muitas fantasias e decepções. Sem falar, é claro, das relações epistolares, um perfeito caldo de cultivo da paixão inventada. Como a história da escritora norte-americana Helene Hanff (1916-1997), que se correspondeu durante 20 anos com Frank Doel, um livreiro de Londres; começou comprando livros dele e acabaram dulcineando docemente. Hanff nunca se atreveu a conhecê-lo pessoalmente; quando começou a juntar coragem, Doel morreu (provavelmente fez bem em não vê-lo: que a realidade não estrague uma boa paixão). As cartas foram publicadas em um delicioso livrinho, 84, Charing Cross Road, o endereço da livraria.

A paixão, enfim, é como aquelas sombras chinesas feitas com as mãos sobre a parede. Se você apaga a luz (o tórrido holofote da sua imaginação), as sombras desaparecem. E assim, amados de antanho cuja ruptura com eles foi um cataclismo, podem te parecer hoje perfeitos desconhecidos sem um átomo de charme por dentro. Dulcinear sem freio é o que tem (eu estou tentando acabar com isso).
Rosa Montero

sábado, fevereiro 22

Recanto para descansar


Fábula dos dois leões

Diz que eram dois leões que fugiram do Jardim Zoológico. Na hora da fuga cada um tomou um rumo, para despistar os perseguidores. Um dos leões foi para as matas da Tijuca e outro foi para o centro da cidade. Procuraram os leões de todo jeito mas ninguém encontrou. Tinham sumido, que nem o leite.

Vai daí, depois de uma semana, para surpresa geral, o leão que voltou foi justamente o que fugira para as matas da Tijuca. Voltou magro, faminto e alquebrado. Foi preciso pedir a um deputado do PTB que arranjasse vaga para ele no Jardim Zoológico outra vez, porque ninguém via vantagem em reintegrar um leão tão carcomido assim. E, como deputado do PTB arranja sempre colocação para quem não interessa colocar, o leão foi reconduzido à sua jaula.


Passaram-se oito meses e ninguém mais se lembrava do leão que fugira para o centro da cidade quando, lá um dia, o bruto foi recapturado. Voltou para o Jardim Zoológico gordo, sadio, vendendo saúde. Apresentava aquele ar próspero do Augusto Frederico Schmidt que, para certas coisas, também é leão.

Mal ficaram juntos de novo, o leão que fugira para as florestas da Tijuca disse pro coleguinha: – Puxa, rapaz, como é que você conseguiu ficar na cidade esse tempo todo e ainda voltar com essa saúde? Eu, que fugi para as matas da Tijuca, tive que pedir arreglo, porque quase não encontrava o que comer, como é então que você… vá, diz como foi.

O outro leão então explicou: – Eu meti os peitos e fui me esconder numa repartição pública. Cada dia eu comia um funcionário e ninguém dava por falta dele.

– E por que voltou pra cá? Tinham acabado os funcionários?

– Nada disso. O que não acaba no Brasil é funcionário público. É que eu cometi um erro gravíssimo. Comi o diretor, idem um chefe de seção, funcionários diversos, ninguém dava por falta. No dia em que eu comi o cara que servia o cafezinho… me apanharam.
Stanislaw Ponte Preta

sexta-feira, fevereiro 21

Diante da ignorância...

Gosia Herba

Chegou o outono

Não consigo me lembrar exatamente o dia em que o outono começou no Rio de Janeiro neste 1935. Antes de começar na folhinha ele começou na Rua Marquês de Abrantes. Talvez no dia 12 de março. Sei que estava com Miguel em um reboque do bonde Praia Vermelha. Nunca precisei usar sistematicamente o bonde Praia Vermelha, mas sempre fui simpatizante. É o bonde dos soldados do Exército e dos estudantes de Medicina.

Raras mulatas no reboque; liberdade de colocar os pés e mesmo esticar as pernas sobre o banco da frente. Os condutores são amenos. Fatigaram-se naturalmente de advertir os soldados e estudantes; quando acontece alguma coisa eles suspiram e tocam o bonde. Também os loucos mansos viajam ali, rumo do hospício. Nunca viajou naquele bonde um empregado da City Improvements Company: Praia Vermelha não tem esgotos. Oh, a City! Assim mesmo se vive na Praia Vermelha. Essenciais são os esgotos da alma. Nossa pobre alma inesgotável! Mesmo depois do corpo dar com o rabo na cerca e parar no buraco do chão para ficar podre, ela, segundo consta, fica esvoaçando pra cá, pra lá. Umas vão ouvir Francesca da Rimini declamar versos de Dante, outras preferem a harpa de Santa Cecília. A maioria vai para o Purgatório. Outras perambulam pelas sessões espíritas, outras à meia-noite puxam o vosso pé, outras no firmamento viram estrelinhas. Os soldados do Exército não podem olhar as estrelas: lembram-se dos generais. Lá no céu tem três estrelas, todas três em carreirinha. Uma é minha, outra é sua. O cantor tem pena da que vai ficar sozinha. Que faremos, oh meu grande e velho amor, da estrela disponível? Que ela fique sendo propriedade das almas errantes. Nossas pobres almas erradas!

Eu ia no reboque, e o reboque tem vantagens e desvantagens. Vantagem é poder saltar ou subir de qualquer lado, e também a melhor ventilação. Desvantagem é o encosto reduzido. Além disso os vossos joelhos podem tocar o corpo da pessoa que vai no banco da frente; e isso tanto pode ser doce vantagem Como triste desvantagem. Eu havia tomado o bonde na Praça José de Alencar; e quando entramos na Rua Marquês de Abrantes, rumo de Botafogo, o outono invadiu o reboque. Invadiu e bateu no lado esquerdo de minha cara sob a forma de uma folha seca. Atrás dessa folha veio um vento, e era o vento do outono. Muitos passageiros do bonde suavam.

No Rio de Janeiro faz tanto calor que depois que acaba o calor a população continua a suar gratuitamente e por força do hábito durante quatro ou cinco semanas ainda.

Percebi com uma rapidez espantosa que o outono havia chegado. Mas eu não tinha relógio, nem Miguel. Tentei espiar as horas no interior de um botequim, nada conseguindo. Olhei para o lado. Ao lado estava um homem decentemente vestido, com cara de possuidor de relógio.

– O senhor pode ter a gentileza de me dar as horas?

Ele espantou-se um pouco e, embora sem nenhum ar gentil, me deu as horas: 13:48. Agradeci e murmurei: “chegou o outono”. Ele deve ter ouvido essa frase tão lapidar, mas aparentemente não ficou comovido. Era um homem simples e tudo o que esperava era que o bonde chegasse a um determinado poste.

Chegara o outono. Vinha talvez do mar e, passando pelo nosso reboque, dirigia-se apressadamente ao centro da cidade, ainda ocupado pelo verão. Ele não vinha soluçando "les sanglois longs des violons" de Verlaine, vinha com tosse, na quaresma da cidade gripada.

As folhas secas davam pulinhos ao longo da sarjeta; e o vento era quase frio, quase morno, na Rua Marquês de Abrantes. E as folhas eram amarelas, e meu coração soluçava, e o bonde roncava.

Passamos diante de um edifício de apartamentos cuja construção está paralisada no mínimo desde 1930. Era iminente a entrada em Botafogo; penso que o resto da viagem não interessa ao grosso público. O próprio começo da viagem creio que também não interessou. Que bem me importa. O necessário é que todos saibam que chegou o outono. Chegou às 13:48 horas, na Rua Marquês de Abrantes, e continua em vigor. Em vista do que, ponhamo-nos melancólicos.
Rubem Braga (1935)

quarta-feira, fevereiro 19

Criança em prece

John Smith Bookshop, Oscar Marzaroli

De Balzac a Cortázar, quem são os escritores seduzidos por gatos

Os gatos são um material literário muito interessante. Poucos animais dão tanto jogo para escrever sobre eles. São elegantes, misteriosos, independentes, interesseiros, ariscos e adoráveis ao mesmo tempo, simpáticos, ágeis, cabeçudos, espertos e, sobretudo, gostam de ser os protagonistas.

Sua relação com os livros ficou marcada também pelos escritores que compartilharam sua vida com os felinos: entre eles há muitos dos considerados “malditos” ou de leitura complexa. Bukowski? Gato. Burroughs? Gato. Capote? Gato. Cortázar? Gato. Hemingway? Gato. Mero acaso?


A literatura já abordou os felinos a partir de muitos pontos de vista. A fórmula mais complicada e audaz, sem dúvida, é a de pôr o gato como narrador. Talvez o ápice desta corrente seja Eu sou um gato (Estação Liberdade), do japonês Natsume Soseki. Um exemplo de narrativa, ritmo e humor japoneses. Com tudo o que isso implica. A receita de comentar o mundo do ponto de vista felino também foi usada por E.T.A. Hoffman em Reflexões do gato Murr (Estação Liberdade) e Gérard Vincent em Akhenaton, a História do homem contada por um gato (Siciliano). Todos coincidem em pegar pesado com o ser humano. E todos os donos de gatos podem perfeitamente imaginar o seu com as patas apoiadas diante da cabeça e criticando com displicência o que as pessoas fazem. Absolutamente tudo, claro.

Há também quem tenha se centrado nos sentimentos do gato, sem entrar (ao menos diretamente) no mérito da estupidez humana. É o que fez Balzac em Penas de Amor de uma gata inglesa (conto incluído no volume O grande livro dos gatos, Alfaguara, no prelo) e P.-J. Stahl em Peines de coeur d’une chatte française (“penas de amor de uma gata francesa”, sem tradução no Brasil).

“O principal é não cair no grande erro / e recordar que um gato não é um cachorro”, escreveu T. S. Eliot. Também houve poetas que os louvassem, como Pablo Neruda e Baudelaire. Borges dedicou versos ao seu, e Eliot um poemário inteiro —Gatos (Companhia das Letrinhas)— que posteriormente serviria como inspiração para o musical Cats.

Há escritores que contaram o lado bom dos gatos (que também existe). Antonio Burgos, por exemplo, narra em Gatos sin fronteras (inédito no Brasil) a chegada à sua casa de Remo e Rómulo. O livro fez tanto sucesso que teve uma segunda parte, Alegatos de los gatos, em que os leitores participaram contando suas histórias.

Talvez a trama mais midiática (rendeu inclusive um filme) seja a de James Bowen e seu livro Um gato de rua chamado Bob (Novo Conceito). Bob decidiu um dia que Bowen, um músico de rua com uma vida complicada, seria seu dono. E que o salvaria e o transformaria em milionário. Neste livro há uma cena com a qual todo mundo que convive com um gato se identificará.

Doris Lessing reuniu em Sobre gatos (Autêntica) a vida dos vários gatos que conheceu —e teve— durante sua vida. Inclusive a revista The New Yorker já publicou vários volumes de compilações dos seus melhores artigos e cartuns protagonizados por felinos (apenas em inglês).

E não deixam de aparecer livros sobre os felinos domésticos. O último, recém-chegado à Espanha vindo do Japão, é Sakka to neko no monogatari (“a história do gato”, inédito no Brasil), de Mariko Koike. Uma peculiar mistura de amor e incerteza em que a gata Lala desempenha um papel principal. Terror psicológico que nada tem a ver com o que sentem os donos de gatos quando os veem com o olhar perdido em algum ponto indeterminável do além.

A escola francesa de ensaio também se debruça sobre as questões felinas. Um dos melhores livros sobre a matéria é Eloge du chat (“elogio do gato”, sem tradução no Brasil), de Stéphanie Hochet. Uma maravilha altamente recomendável que explica por que os gatos sempre querem as portas abertas. “Estudei muito os filósofos e os gatos. A sabedoria dos gatos é imensamente superior”, afirma Hippolyte Taine em Vie et opinions philosophiques d’un chat (“vida e opiniões filosóficas de um gato”, inédito no Brasil).

Foram escritos também vários livros sobre a história do gato e sua relação com o ser humano e seu lugar no mundo. Em The lion in the living room (“o leão na sala de estar”), Abigail Tucker traçou um percurso pela biografia dos bichanos como espécie e sua capacidade de dominar o mundo. The tiger in the house (“o tigre na casa”), de Carl Van Vechten, é outra interessante retrospectiva da interação do gato com seu entorno (entenda o homem como tal). Tem a peculiaridade de ter sido escrito em 1920, antes dos tempos do Instagram.

A curiosa forma de ser dos gatos propiciou também sua presença no mundo dos quadrinhos. Facilmente caricaturáveis e simpáticos por natureza, deixaram para a história personagens como Garfield (Nemo) e Simon’s Cat (L&PM), cujas tiras cômicas retratam muito bem a alma da felinidade. Nesse compartimento, uma pequena recomendação algo heterogênea: o livro Cats are paradoxes (“gatos são paradoxos”, título originalmente em inglês), do ilustrador espanhol Pablo Amargo (80 ilustrações; 80 adivinhações).

Se os títulos sugeridos forem muitos, ou se você busca uma aproximação mais geral à relação entre os gatos e a literatura (e vice-versa), a Alfaguara lança em abril no Brasil O grande livro dos gatos, uma revisão muito completa e interessante da presença felina no mundo das letras.

Entre tantas páginas e tanta tinta dedicada aos gatos, esconde-se a explicação de por que eles conseguiram conquistar a Internet sem saber usar um computador ou um celular. Também sua espetacular evolução, que os levou de serem considerados seres mágicos a algo muito mais útil e especial: que os humanos recolham seu cocô. E fiquem felizes por isso. Isso sim que é dominar o mundo.
Pedro Zuazua, autor de "En mi casa no entra un gato"

Isolamento

 Hollie Fuller

Dos macacos e da quieta substância dos dias

Quero dormir mas este não é um lugar de dormir; esta é uma 
cidade em construção. Eu sou um homem envelhecendo e 
tenho trabalhado, sou um homem solitário e não tenho
grandes ambições; estou cansado e quero dormir.
Rubem Braga

Há quem feche munhecas e discurse contra o barulho. Os mais chatos são os que o fazem não por simples aversão pessoal, mas pelo interesse coletivo, pelas provas de que o barulho subverte as condições normais da vida humana, produz males orgânicos e psíquicos, adoece o indivíduo, corrompe a sociedade. Escrevem e falam isso. Mas porventura não andariam enganados nos seus prognósticos esses que hoje condenam o barulho, como se enganaram aqueles que no século XIX afirmaram que o invento da locomotiva ameaçava trazer as piores consequências, pois o nosso organismo não suportaria as anunciadas velocidades de trinta e quarenta quilômetros por hora? Mentalidades não palpiteiras mas cartesianas lançaram mãos de aparelhos barulhométricos de precisão, que medem a barulhopatia por uma escala correspondente à de um termômetro para medir febre. E são muitos os que pensam que o barulho não é senão o sintoma febril da moléstia em moda cujo nome é violência (embora nos velhos dicionários se chamasse animalidade, brutalidade, boçalidade etc.) Barulho, agressão contra a sanidade acústica do meio, é doença provocada por doentes. Falou a sociologia psiquiátrica.

O MATA-BORRÃO

Em 1963 apareceu na Alemanha um livro com o título "Crimes contra a natureza", conjunto de ensaios onde figura um senhor Walther von La Roche dissertando muito germanicamente sobre "doenças causadas pelos ruídos". São doutas as razões do senhor Von La Roche, porém mais impressionantes pela imagem evocada são as palavras de um outro autor, Kurt Tvcholsky, por ele citadas como proêmio: "Os ruídos se aprofundam no cérebro que os absorve como o mata-borrão faz com a água (ou a tinta?). Por fim fica-se embebido de barulho, prostrado e incapacitado de pensar." Note bem todo aquele cujos nervos comem e bebem, respiram e transpiram barulho. Pense como é o caminho da loucura estar pensando que sua cabeça não pensa. Alguma ideia que saia do mata-borrão cerebral, quando espremido, será apenas sob a forma de goteira em lata de zinco.

BARULHOBRÁS

E o curioso é que, apesar de todos esses inconvenientes, danos e perigos, não se levante contra a calamidade nenhuma das forças militares ou civis, não se mobilize um esquadrão dos "tonton macoute" (ou sucedâneos) para cuidar do caso; não se institua o Ministério do Barulho, não se crie um órgão autárquico, o Barulhobrás, onde o barulho não se desaproveitasse como produção residual, mas fosse devidamente promovido e passasse a ocupar edifícios, departamentos, burocracias, papeladas e taxas, integrando os esforços racionalizadores e desenvolvimentistas. Estas alternativas seriam de eficiência uniforme, pois, segundo velhas opiniões (quero crer que subversivas), tudo quanto se recolhe ao aconchego administrativo por via de regra adormece ou se transforma em silêncio.

O PREÇO DO PROGRESSO

Para outros, a falta de medidas e providências de qualquer espécie tem apoio na convicção de que "essas coisas são assim mesmo". Surgem da própria vida, surgem da evolução inevitável, surgem das artes, da ciência, das invenções e melhoramentos de que se compõe o progresso. Ou haverá alguém por aí contra o progresso? O barulho seria o ônus justo e natural pelas fruições do homem nas delícias da mecanização e da velocidade.

TRANCADO O PORTÃO

Certo, no entanto, é que Leandro Barbieri (apelidado Gato), autor dos tangos para o "O último tango em Paris", baixando em Salvador para fugir aos zé-pereiras da fama, se surpreende de encontrar na Bahia uma cidade mais barulhenta que Nova York. O senhor Julio Cortázar, famoso escritor argentino, residente em Paris, está assombrado com o barulho do Rio de Janeiro. Em um hotel vizinho de Trafalgar Square, no chamado coração de Londres, se pode dormir tranquilamente, com muito menos rumores do que, por exemplo, em Poços de Caldas, pequena cidade de águas, de ares serranos, de leite de vaca, de doces de tacho e de espairecimentos agrestes.

Ninguém duvida de que Paris e Londres se hajam tornado lugares mais populosos que Poços de Caldas e que possam também haver ultrapassado Poços de Caldas em número de veículos, de fábricas, em volume de tráfego, em atividades produtoras, educacionais e recreativas, chegando a cidades chamadas de tumultuárias. Sem embargo, é onde não se ouve tumulto algum. As multidões trabalham, caminham, estudam, se deslocam e se divertem com tal compostura e tão moderada efusão de barulhos que chegariam a parecer populações descultivadas e enfraquecidas, sem o vigor, o poder, o uso e o costume do berro, manifestação típica da vitalidade tropical. O berro pode ser (nos trópicos) mecânico ou oral. Pode ser cantado, musicado e até mesmo conversado, porque é o tom, o modo pelo qual as massas populares asseguram a comunicação ou afirmam como estão vivas e adiantadas. O barulho retrata uma formação antropológica, uma natureza, uma condição e uma cultura. Fixando-se como uma vivência, uma quase dependência orgânica, o barulho ignora de tal maneira os lugares e o respeito entre as pessoas, que mesmo nos velórios e funerais já não existe o silêncio. Só mesmo no cemitério depois de trancado o portão.

MULTA CONTRA CARRO DE BOIS

Quando menino, podia escutar cá de baixo, na cidade, o canto dos macacos sauás sobre as árvores, na grota da fonte dos Amores. Nas velhas noites daquele tempo, o que se ouvia depois de fechado o comércio e terminada a sessão do cinema era somente a longa bubuia do ribeirão. Ou, na época das chuvas, a polifonia dos sapos nas águas paradas e charnecas do pasto da Olaria. Para fazer barulho do tráfego nos mal capinados trajetos urbanos só havia mesmo as pesadas carroças do Villa, dos Noronha ou do Caetano Pereira. Às vezes entravam tropas de burros e suas cargas, a mula mestra com uma fileira de cincerros campainhando no peitoral de couro. Logo, logo no rancho do armazém emudecia a orquestra muladeira. Mas o honrado fiscal Antônio Canuto, de cavanhaque e bengala, fazia deter (e não raro multava) o carreiro cujo carro de bois viesse rechinando pelas ruas do povoado. Era o pecado máximo contra o sossego e os nervos dos moradores e dos banhistas. E não havia tílburis, caleças, carros de praça com seus cocheiros de compridos bigodes e compridas guascas? Não havia os troles, as aranhas, depois rebatizadas com o nome de charretes? Havia, sim, um operoso punhado desses calhambeques e o próprio Dom Pedro II os conheceu. Contudo não faziam rumor que amolasse ninguém. E, abstraindo o inevitável e vegetariano cocô deposto ao longo dos caminhos, esses veículos não faziam mais do que despertar em movimento a poesia das paisagens na quieta e luminosa substância dos dias. Pois tudo era paz entre o onduloso amuramento das montanhas, debaixo do infinito, vário e pequenino céu.

DETROIT SOBE A SERRA

Porém houve um dia em que sacudida de emoção uma parte do povo saiu para a rua enquanto outra parte fugia de medo para os telhados e fundos de quintal. Foi no dia em que, estrondando, correndo e lançando por detrás uma bárbara fumaça, apareceu de repente a desapoderada e ameaçadora máquina que andava sozinha. Era o primeiro fordeco a fordecar nestas paragens, a meter motor e a queimar uma espécie de novo querosene sobre os nossos ares, que até ali não tinham tido outros cheiros e estados senão os da pureza com que Deus os fizera e a natureza os mantinha. Esse primeiro automóvel saíra dos bolsos surpreendentes dum sossegado mineirão de brancos bigodes e de colarinho duro que se chamava Luiz da Pedra, major da Guarda Nacional e dono também da Companhia de Força e Luz. Mineirão, bonachão, major, mas avançado. Foi o nosso pioneiro nos transportes mecanizados. Naquela data o major inseria estas mantiqueiras sob o signo de Detroit, cujas novidades fascinavam e continuam a fascinar o mundo. O progresso foi subindo a serra e cumulando-a de confortos e de melhoramentos. Acabava o sossego.

POIS ENTÃO!

Hoje a rua onde moro se modernizou e encheu tanto que atingiu o grau do perfeito pandemônio. É o leito fluvial de diurnos e noturnos cataclismos automobilísticos. À hora de se dormir os carros trafegam com tais descargas e tal ímpeto que mais parecem um enxame de Jumbos e Concordes rasando sobre a cama em que me deito. Enquanto isso as motocicletas metralham para todos os lados e buzinas urram na noite como onças. Então você não dorme? E vem o prestimoso e oportuno chavão: quem é que pode dormir com um barulho desses? Eu apenas desacordo e caio na catalepsia da estafa, após a tensa e longa jornada de trabalhos.

Entretanto, já de manhãzinha, mal raiado o dia, a alvorada irrompe das sombras na orquestra diesel dos Fenemês que usam esquentar os motores sob minhas janelas. Não raro a estes concertos se reúnem os programas matinais de rádio, no tipo Alvarenga e Ranchinho. E logo recomeçam os torneios do velódromo geral. Nos últimos anos de sua vida, com seus nervos bastante desgastados, Santos Dumont esteve em Poços de Caldas e se hospedou no Grande Hotel, ocupando cômodos que dão para a rua Pernambuco, então sossegadíssima rua de terra. Mesmo assim a prefeitura botou ordens para que não houvesse tráfego ou rumor naquele trecho e nada melindrasse o repouso do Pai da Aviação. Não era apenas fazer homenagem, era acreditar num meio de cura.

Mas, enfim, por que estou eu escrevendo estas coisas? Nossos burgomestres, margraves e alcaides não sabem de tudo isso? E por acaso somos Londres ou Paris? Pois então!
Jurandir Ferreira, "Da quieta substância dos dias"

terça-feira, fevereiro 18

Portal


E surge a história...

Verónica Cendoya
Eu penso que, para criar uma história, é necessário, antes de mais nada, construir um mundo, o mais "mobilado" possível, até aos mais pequenos pormenores. Se eu construir um rio com duas margens e se, na margem esquerda, puser um pescador, se atribuir a esse pescador um temperamento irascível e um cadastro não muito limpo, pronto, poderei começar a escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer. Que faz um pescador? Pesca (e eis uma sequência completa de gestos mais ou menos inevitáveis). E depois que se passa? Ou o peixe morde, ou não morde. Se morde, o pescador agarra os peixes e volta para casa todo contente. Fim da história. Se não morde, e dado que se trata de alguém irascível, talvez se encolerize. Talvez parta a cana de pesca. Não é grande coisa, mas já é um começo. Ora, há um provérbio indiano que diz: "Senta-te na margem do rio e espera, o cadáver do teu inimigo não tardará a passar." E se, arrastado pela corrente, passasse um cadáver, já que esta possibilidade está contida na área intertextual do rio? Não esqueçamos que o meu pescador tem um cadastro carregado. Quererá correr o risco de se meter em maus lençóis? Que fará? Fugirá, fingirá não ver o cadáver? Sentirá pesar sobre si todas as suspeitas, pois que, seja como for, este é o cadáver do homem que ele odiava? Irascível como é, irritar-se-á por não ter sido ele a realizar a vingança ardentemente desejada? Como vêem, bastou «mobilar» o mundo com quase nada e logo nasceu o começo de uma história. E também o começo de um estilo, porque um pescador a pescar deveria impor um ritmo narrativo lento, fluvial, o da espera paciente, mas também o dos sobressaltos da sua impaciente irritabilidade. Basta construir um mundo, as palavras vêm a seguir, quase sozinhas: Rem tene, verba sequentur.
Eugénio Lisboa