Chegou à porta do Céu junto com São Miguel. São Pedro, ouvindo que o chamavam, abriu a porta e deixou que entrassem o anjo e seu convidado. Quando viu do lado de fora o vilão sozinho, repreendeu-o:
— Aqui não se entra sem acompanhante, e além disso não queremos saber de vilães. Portanto, suma-se!
— Como ousais chamar-me de vilão? Vilão sois vós, e grandíssimo vilão. Depois de negar três vezes a Nosso Senhor, ainda vos acreditais com direito de impedir a entrada de um cidadão honrado num lugar onde nem deveríeis estar? Isso é conduta para um apóstolo? Como é que Deus foi consentir em entregar a guarda do paraíso a quem age dessa maneira!
São Pedro não estava acostumado a ouvir sermões como esse, e ficou tão desnorteado que correu para dentro, sem nada responder. Encontrou São Tomé e lhe contou a vergonha que acabara de passar.
— Deixe isso comigo — respondeu São Tomé. — Vou ver esse mendigo, e logo o despacharei.
Aproximou-se da porta e falou duramente ao vilão:
— Como ousas apresentar-te no lugar dos escolhidos, onde jamais entrou quem não fosse mártir ou confessor?
— Ah! É o senhor que vem me dizer isso? E o que está o senhor fazendo aí dentro? Um homem sem fé, que não acreditou na Ressurreição do Senhor, duvidando da palavra de pessoas dignas de crédito. E ainda precisou tocar nas chagas do Ressuscitado, para poder acreditar. Se gente tão descrente como o senhor entra aqui, por que não posso entrar eu, que sempre tive fé?
São Tomé baixou a cabeça, envergonhado, e voltou aonde estava São Pedro. São Paulo, que passava por ali, ouviu as lamentações dos dois apóstolos e se aproximou. Fizeram-lhe um relato do acontecido, e então ele disse aos dois apóstolos desapontados:
— É que não sabeis fazer as coisas direito. Vou já acertar o passo desse vilão.
Foi até a porta com passo decidido, pegou o vilão pelo braço e quis forçá-lo a sair aos empurrões. O vilão resistiu e lançou em rosto de São Paulo:
— Não me estranha nem um pouco essa brutalidade num homem como o senhor, perseguidor de cristãos que nunca escondeu sua tirania. Para convertê-lo, foi necessário que Deus demonstrasse tudo o que sabe fazer, em matéria de milagres, e ainda assim o senhor foi um revoltoso, discutindo com um superior que era São Pedro. Mesmo não sendo eu Santo Estêvão nem nenhum dos bons cristãos que o senhor torturou, deixe estar, que eu o conheço muito bem.
Apesar da segurança que São Paulo havia inicialmente demonstrado, desconcertou-se tanto quanto os outros. Achou melhor juntar-se a eles, e combinaram de ir queixar-se a Deus. Como chefe dos apóstolos, São Pedro tomou a palavra diante de Nosso Senhor, para pedir justiça. Terminou dizendo que a insolência do vilão o deixara tão envergonhado, que não se atrevia a voltar ao seu posto enquanto o insolente se encontrasse ali.
— Eu mesmo irei falar com esse homem — disse Nosso Senhor.
Ao chegar diante da porta, Nosso Senhor perguntou ao vilão:
— Por que o senhor compareceu sem a companhia de um anjo? Aqui só se entra acompanhado, e além disso o senhor não tem o direito de insultar os meus apóstolos.
— Senhor, vossos apóstolos quiseram afastar-me, e eu acho que tenho tanto direito de entrar quanto eles, pois não vos reneguei, não duvidei da vossa Ressurreição nem apedrejei ninguém. Sei que ninguém é recebido aqui sem passar por um julgamento, e por isso quero me submeter ao vosso. Vós me fizestes nascer na pobreza, suportei minhas penas sem queixar-me e trabalhei toda a minha vida. Ensinaram-me a crer em vosso Evangelho, e eu acreditei. Fiz tudo o que me disseram que devia fazer. Dei esmolas aos que eram mais pobres do que eu e reparti o meu pão com eles. Confessei-me e comunguei quando o vigário mandou, e ele me disse que quem vive assim ganha o Céu. Por fim me fizestes entrar para ser interrogado, e aqui vou ficar, pois vós mesmo elogiastes no Evangelho uma que “escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada”, e não podeis voltar vossa palavra atrás.
— Muito bem, podes ficar! Sem dúvida ganhaste o Céu pelos teus discursos, que enunciaste de modo convincente. Esta é a vantagem de ter freqüentado boa escola.
Jakes de Basin in R. Menéndez Pidal, "Antología de cuentos"
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