cidade em construção. Eu sou um homem envelhecendo e
tenho trabalhado, sou um homem solitário e não tenho
grandes ambições; estou cansado e quero dormir.
Rubem Braga
Há quem feche munhecas e discurse contra o barulho. Os mais chatos são os que o fazem não por simples aversão pessoal, mas pelo interesse coletivo, pelas provas de que o barulho subverte as condições normais da vida humana, produz males orgânicos e psíquicos, adoece o indivíduo, corrompe a sociedade. Escrevem e falam isso. Mas porventura não andariam enganados nos seus prognósticos esses que hoje condenam o barulho, como se enganaram aqueles que no século XIX afirmaram que o invento da locomotiva ameaçava trazer as piores consequências, pois o nosso organismo não suportaria as anunciadas velocidades de trinta e quarenta quilômetros por hora? Mentalidades não palpiteiras mas cartesianas lançaram mãos de aparelhos barulhométricos de precisão, que medem a barulhopatia por uma escala correspondente à de um termômetro para medir febre. E são muitos os que pensam que o barulho não é senão o sintoma febril da moléstia em moda cujo nome é violência (embora nos velhos dicionários se chamasse animalidade, brutalidade, boçalidade etc.) Barulho, agressão contra a sanidade acústica do meio, é doença provocada por doentes. Falou a sociologia psiquiátrica.
O MATA-BORRÃO
Em 1963 apareceu na Alemanha um livro com o título "Crimes contra a natureza", conjunto de ensaios onde figura um senhor Walther von La Roche dissertando muito germanicamente sobre "doenças causadas pelos ruídos". São doutas as razões do senhor Von La Roche, porém mais impressionantes pela imagem evocada são as palavras de um outro autor, Kurt Tvcholsky, por ele citadas como proêmio: "Os ruídos se aprofundam no cérebro que os absorve como o mata-borrão faz com a água (ou a tinta?). Por fim fica-se embebido de barulho, prostrado e incapacitado de pensar." Note bem todo aquele cujos nervos comem e bebem, respiram e transpiram barulho. Pense como é o caminho da loucura estar pensando que sua cabeça não pensa. Alguma ideia que saia do mata-borrão cerebral, quando espremido, será apenas sob a forma de goteira em lata de zinco.
BARULHOBRÁS
E o curioso é que, apesar de todos esses inconvenientes, danos e perigos, não se levante contra a calamidade nenhuma das forças militares ou civis, não se mobilize um esquadrão dos "tonton macoute" (ou sucedâneos) para cuidar do caso; não se institua o Ministério do Barulho, não se crie um órgão autárquico, o Barulhobrás, onde o barulho não se desaproveitasse como produção residual, mas fosse devidamente promovido e passasse a ocupar edifícios, departamentos, burocracias, papeladas e taxas, integrando os esforços racionalizadores e desenvolvimentistas. Estas alternativas seriam de eficiência uniforme, pois, segundo velhas opiniões (quero crer que subversivas), tudo quanto se recolhe ao aconchego administrativo por via de regra adormece ou se transforma em silêncio.
O PREÇO DO PROGRESSO
Para outros, a falta de medidas e providências de qualquer espécie tem apoio na convicção de que "essas coisas são assim mesmo". Surgem da própria vida, surgem da evolução inevitável, surgem das artes, da ciência, das invenções e melhoramentos de que se compõe o progresso. Ou haverá alguém por aí contra o progresso? O barulho seria o ônus justo e natural pelas fruições do homem nas delícias da mecanização e da velocidade.
TRANCADO O PORTÃO
Certo, no entanto, é que Leandro Barbieri (apelidado Gato), autor dos tangos para o "O último tango em Paris", baixando em Salvador para fugir aos zé-pereiras da fama, se surpreende de encontrar na Bahia uma cidade mais barulhenta que Nova York. O senhor Julio Cortázar, famoso escritor argentino, residente em Paris, está assombrado com o barulho do Rio de Janeiro. Em um hotel vizinho de Trafalgar Square, no chamado coração de Londres, se pode dormir tranquilamente, com muito menos rumores do que, por exemplo, em Poços de Caldas, pequena cidade de águas, de ares serranos, de leite de vaca, de doces de tacho e de espairecimentos agrestes.
Ninguém duvida de que Paris e Londres se hajam tornado lugares mais populosos que Poços de Caldas e que possam também haver ultrapassado Poços de Caldas em número de veículos, de fábricas, em volume de tráfego, em atividades produtoras, educacionais e recreativas, chegando a cidades chamadas de tumultuárias. Sem embargo, é onde não se ouve tumulto algum. As multidões trabalham, caminham, estudam, se deslocam e se divertem com tal compostura e tão moderada efusão de barulhos que chegariam a parecer populações descultivadas e enfraquecidas, sem o vigor, o poder, o uso e o costume do berro, manifestação típica da vitalidade tropical. O berro pode ser (nos trópicos) mecânico ou oral. Pode ser cantado, musicado e até mesmo conversado, porque é o tom, o modo pelo qual as massas populares asseguram a comunicação ou afirmam como estão vivas e adiantadas. O barulho retrata uma formação antropológica, uma natureza, uma condição e uma cultura. Fixando-se como uma vivência, uma quase dependência orgânica, o barulho ignora de tal maneira os lugares e o respeito entre as pessoas, que mesmo nos velórios e funerais já não existe o silêncio. Só mesmo no cemitério depois de trancado o portão.
MULTA CONTRA CARRO DE BOIS
Quando menino, podia escutar cá de baixo, na cidade, o canto dos macacos sauás sobre as árvores, na grota da fonte dos Amores. Nas velhas noites daquele tempo, o que se ouvia depois de fechado o comércio e terminada a sessão do cinema era somente a longa bubuia do ribeirão. Ou, na época das chuvas, a polifonia dos sapos nas águas paradas e charnecas do pasto da Olaria. Para fazer barulho do tráfego nos mal capinados trajetos urbanos só havia mesmo as pesadas carroças do Villa, dos Noronha ou do Caetano Pereira. Às vezes entravam tropas de burros e suas cargas, a mula mestra com uma fileira de cincerros campainhando no peitoral de couro. Logo, logo no rancho do armazém emudecia a orquestra muladeira. Mas o honrado fiscal Antônio Canuto, de cavanhaque e bengala, fazia deter (e não raro multava) o carreiro cujo carro de bois viesse rechinando pelas ruas do povoado. Era o pecado máximo contra o sossego e os nervos dos moradores e dos banhistas. E não havia tílburis, caleças, carros de praça com seus cocheiros de compridos bigodes e compridas guascas? Não havia os troles, as aranhas, depois rebatizadas com o nome de charretes? Havia, sim, um operoso punhado desses calhambeques e o próprio Dom Pedro II os conheceu. Contudo não faziam rumor que amolasse ninguém. E, abstraindo o inevitável e vegetariano cocô deposto ao longo dos caminhos, esses veículos não faziam mais do que despertar em movimento a poesia das paisagens na quieta e luminosa substância dos dias. Pois tudo era paz entre o onduloso amuramento das montanhas, debaixo do infinito, vário e pequenino céu.
DETROIT SOBE A SERRA
Porém houve um dia em que sacudida de emoção uma parte do povo saiu para a rua enquanto outra parte fugia de medo para os telhados e fundos de quintal. Foi no dia em que, estrondando, correndo e lançando por detrás uma bárbara fumaça, apareceu de repente a desapoderada e ameaçadora máquina que andava sozinha. Era o primeiro fordeco a fordecar nestas paragens, a meter motor e a queimar uma espécie de novo querosene sobre os nossos ares, que até ali não tinham tido outros cheiros e estados senão os da pureza com que Deus os fizera e a natureza os mantinha. Esse primeiro automóvel saíra dos bolsos surpreendentes dum sossegado mineirão de brancos bigodes e de colarinho duro que se chamava Luiz da Pedra, major da Guarda Nacional e dono também da Companhia de Força e Luz. Mineirão, bonachão, major, mas avançado. Foi o nosso pioneiro nos transportes mecanizados. Naquela data o major inseria estas mantiqueiras sob o signo de Detroit, cujas novidades fascinavam e continuam a fascinar o mundo. O progresso foi subindo a serra e cumulando-a de confortos e de melhoramentos. Acabava o sossego.
POIS ENTÃO!
Hoje a rua onde moro se modernizou e encheu tanto que atingiu o grau do perfeito pandemônio. É o leito fluvial de diurnos e noturnos cataclismos automobilísticos. À hora de se dormir os carros trafegam com tais descargas e tal ímpeto que mais parecem um enxame de Jumbos e Concordes rasando sobre a cama em que me deito. Enquanto isso as motocicletas metralham para todos os lados e buzinas urram na noite como onças. Então você não dorme? E vem o prestimoso e oportuno chavão: quem é que pode dormir com um barulho desses? Eu apenas desacordo e caio na catalepsia da estafa, após a tensa e longa jornada de trabalhos.
Entretanto, já de manhãzinha, mal raiado o dia, a alvorada irrompe das sombras na orquestra diesel dos Fenemês que usam esquentar os motores sob minhas janelas. Não raro a estes concertos se reúnem os programas matinais de rádio, no tipo Alvarenga e Ranchinho. E logo recomeçam os torneios do velódromo geral. Nos últimos anos de sua vida, com seus nervos bastante desgastados, Santos Dumont esteve em Poços de Caldas e se hospedou no Grande Hotel, ocupando cômodos que dão para a rua Pernambuco, então sossegadíssima rua de terra. Mesmo assim a prefeitura botou ordens para que não houvesse tráfego ou rumor naquele trecho e nada melindrasse o repouso do Pai da Aviação. Não era apenas fazer homenagem, era acreditar num meio de cura.
Mas, enfim, por que estou eu escrevendo estas coisas? Nossos burgomestres, margraves e alcaides não sabem de tudo isso? E por acaso somos Londres ou Paris? Pois então!
Jurandir Ferreira, "Da quieta substância dos dias"
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