quarta-feira, fevereiro 26

O lado B de Machado de Assis

Romualdo sonhava ser ministro do Império. Vinha de um lar modesto, mas invejava os bailes feéricos promovidos pelos vizinhos ricos na casa em frente e admirava a farda do ministro que morava na mesma rua. Ainda criança, ouvira de um mestre-escola que o importante na vida era formular, desde cedo, um programa, um plano para se chegar a seus objetivos. Reformulado ao longo dos anos, o programa de Romualdo passava pelo renome literário, que ele mal arranhou com um livro de poemas; pela Faculdade de Direito, que ele concluiu; e pelo casamento vantajoso com uma mulher de família rica, que lhe escapou. Não, Romualdo não chegará nem perto do ambicionado ministério. Sua vida medíocre contrasta com uma extraordinária história de ascensão social no Rio de Janeiro do século XIX: a trajetória do mulato de origem ainda mais humilde, filho de um pintor de paredes e de uma portuguesa, neto de escravos alforriados, que começa a vida profissional como aprendiz de tipógrafo da Imprensa Nacional e, sem jamais pisar em uma universidade, acaba se tornando membro fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, consagrado como a grande figura da literatura de sua época e como o maior escritor brasileiro de todos os tempos. O próprio Romualdo é uma criação desse autor excepcional — Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). E até nisso o aspirante a ministro ocupa uma posição infeliz: não angariou a fama de um Brás Cubas, de um Bentinho ou de um Simão Bacamarte.

Romualdo é o triste herói de uma peça um tanto obscura de Machado de Assis, o conto “O programa”, publicado na revista "A Estação", em capítulos, entre 1882 e 1883. Esse texto agora está incluído em "Contos (quase) esquecidos" (Filocalia; 440 páginas; R$ 99,90), antologia singular das narrativas breves de Machado de Assis que chegará às livrarias na semana que vem. Organizada pelo crítico e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) João Cezar de Castro Rocha, a obra pretende exatamente jogar luz sobre criações menos conhecidas do grande mestre.
“A literatura cumpria, no século XIX, o papel que hoje cabe ao Instagram: era uma escada possível para arrivistas sociais. Mas os personagens de Machado de Assis que se arriscam por esse caminho acabam mal”
Romance, crônica, crítica, poesia, teatro, conto: não houve gênero literário que Machado de Assis não tenha visitado. Mas ele é lembrado e celebrado sobretudo como romancista. Suas obras mais lidas e exigidas em escolas, concursos e vestibulares são "Memórias póstumas de Brás Cubas", "Quincas Borba" e "Dom Casmurro", os três primeiros romances do que se convencionou chamar sua fase madura (ou “realista”, embora o escritor brasileiro rejeitasse, em uma crítica dura a "O primo Basílio", de Eça de Queirós, a “reprodução fotográfica e servil das coisas mínimas e ignóbeis” que seria praticada pela escola literária do Realismo). Em comparação, o conto parece um tanto negligenciado. Há uma vasta produção a ser explorada no gênero: Machado de Assis escreveu mais de 200 contos, apenas 76 deles recolhidos nas sete coletâneas que publicou em vida, com títulos indistintos como "Papéis avulsos", "Várias histórias" e "Páginas recolhidas". A seleção de Castro Rocha busca, como se anuncia no título, as narrativas esquecidas de Machado de Assis. A coletânea até abre espaço para alguns títulos relativamente conhecidos, como “Um homem célebre” e “Pai contra mãe”, mas “O Alienista” e “Missa do Galo”, dois itens obrigatórios nas antologias, são ausências conspícuas. Dos 30 textos selecionados, 11 não foram coletados em livro pelo autor. Não há contos inéditos, mas todos foram cotejados às publicações originais, para depurar erros. Castro Rocha contou com a colaboração de dois pesquisadores de acervos machadianos, Valdiney Valente Lobato de Castro e Felipe Pereira Rissato.


Os contos foram divididos em quatro eixos temáticos: “Literatura e música”; “Política e escravidão”; “Desrazão”; e “Filosofia”. Em cada uma dessas seções, os textos são apresentados em ordem cronológica, no esforço de mostrar não o gênio já imobilizado no mármore da consagração acadêmica, mas o escritor em processo, que vai aprimorando seu domínio do estilo e da construção de personagens e situações. “O programa” aparece na primeira parte, dedicada às artes, pela circunstância de o desafortunado Romualdo tentar a sorte como poeta — a literatura cumpria, no século XIX, o papel que hoje cabe ao Instagram: era uma escada possível para o arrivista social. Mas os personagens machadianos que fazem da arte sua paixão e profissão não se saem melhor do que o diletante Romualdo. Pestana, de “Um homem célebre”, aspira a ser um compositor de música “séria”, um companheiro de Mozart e Beethoven, mas só consegue produzir polcas populares — Castro Rocha levanta a hipótese de que o personagem seja uma versão musical de José de Alencar, que escrevia romances com a facilidade com que Pestana criava suas polcas. Mais descarnado e cruel é o retrato de João Maria, o pintor pobre de “Habilidoso”: por ouvir desde cedo que tinha habilidade no pincel, ele dispensa todo o treinamento formal — e, claro, fracassa como artista. Nesses contos, como também em “O anel de Polícrates” e “Um erradio”, encontramos variações sobre a ilusão do talento natural, ainda hoje valorizado na cultura brasileira. Como bem nota Castro Rocha, Machado de Assis ocupa o polo oposto desse culto da espontaneidade. O criador de Romualdo, Pestana e José Maria sabe que “o artista deve manter seu talento sob rédea curta, pois lapidá-lo exige controle sobre a facilidade favorecida pelo dom”.

Para “Política e escravidão”, Castro Rocha buscou textos que desmentem o antigo lugar-comum do Machado de Assis descompromissado, que se esquivava de posições sobre as questões de seu tempo — sobretudo sobre a grande questão humana do Brasil Império, a escravidão. A partir do final dos anos 1970, é verdade, firmou-se a interpretação marxista do crítico Roberto Schwarz, que tende a reduzir a obra de Machado de Assis a uma tese sociológica sobre um país escravocrata na periferia do capitalismo — mas, no breve prefácio a essa seção da antologia, Castro Rocha não discute tal linha de análise. A peça mais curiosa aqui talvez seja “Mariana”, que saiu no "Jornal das Famílias" em 1871 — dez anos antes da publicação em livro de "Memórias póstumas de Brás Cubas", considerado um divisor de águas na obra do autor. Trata-se de mais uma história de amor impossível, velho tema do "Romeu e Julieta", de William Shakespeare, que o romantismo quase transforma em lugar-comum. Machado faz aí uma variação significativa: Mariana, a personagem-título, é uma jovem escrava, “uma gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa”, que se apaixona tragicamente pelo filho de sua senhora. Esta é descrita como uma mulher compassiva, generosa. Quando a ocasião o exige, porém, ela saberá lembrar que Mariana, como escrava, lhe deve obediência.

Em um conto bem mais tardio, “Pai contra mãe”, publicado em seu último livro, "Relíquias de Casa Velha", de 1906, Machado de Assis dispensará os arroubos melodramáticos do romantismo para apresentar com maior pungência o caráter violento da escravidão. É a história de um pai de família miserável que, para não abandonar o filho a uma instituição de caridade, sai em busca da recompensa prometida por uma escrava fugida — uma escrava grávida, que teme perder o filho sob os castigos do senhor brutal. Escrevendo uma década e meia depois da Abolição, Machado de Assis parece sinalizar, no choque entre uma escrava e um homem livre mas muito pobre, a persistência dos impasses sociais que o país herdaria da escravidão.

Segue-se a seção devotada à loucura, um tema forte do criador do alienista Simão Bacamarte. O organizador da coletânea prefere o termo “desrazão”: a loucura, diz Castro Rocha, é o oposto exato da razão que os iluministas tanto prezavam, e Machado de Assis fala de realidades mais indecisas e complicadas. O “Conto alexandrino”, saborosa fantasia histórica ambientada no Egito de Ptolomeu, encena a tragicomédia de dois filósofos que buscam a fórmula para manipular vícios e virtudes humanas. Tornam-se cobaias do próprio experimento, bebendo infusões de sangue de rato, na expectativa de que esse líquido insalubre os converta em ratoneiros (ladrões). Ao custo do sofrimento de inúmeros roedores — vale lembrar que a tortura de um rato figura também em “A causa secreta”, conto que não entrou nessa coletânea —, a experiência é bem-sucedida, para a desgraça dos dois pesquisadores. Em “O lapso”, encontramos outro fisiologista empenhado em mudar, com medicamentos, as qualidades morais de um homem. Machado de Assis conhecia bem a ciência de seu tempo e leu a obra de evolucionistas como Charles Darwin e Herbert Spencer. Suas especulações (em geral satíricas) sobre as bases materiais da moralidade humana merecem uma releitura atenta hoje, quando a moderna neurociência busca entender esse antigo problema em novos termos.

Por fim, chegamos aos contos reunidos sob a rubrica “Filosofia” — que, esclarece Castro Rocha, visam corrigir um vício renitente de alguns críticos machadianos, sempre propensos a ver em toda linha do mestre uma confirmação de seu reputado ceticismo. É um equívoco, diz o organizador, imaginar que uma obra ficcional possa desenvolver “algo próximo a uma doutrina filosófica, com sua estrutura conceitual coerente e visão de mundo coesa”. De resto, Machado de Assis tinha um olho acurado e irônico para as contradições internas dos grandes sistemas de ideias. Os personagens de “Conto alexandrino”, na seção anterior do livro, são um bom exemplo: para avançar no conhecimento sobre as raízes da moralidade, não hesitam em maltratar e sacrificar ratos — o que será um preâmbulo para a experimentação em seres humanos.

O filósofo Machado de Assis ensina que boa ficção também se faz com ideias triviais. É banal dizer que a fortuna é passageira e que, se hoje estamos por cima, talvez amanhã estejamos por baixo. O escritor, no entanto, desenvolve esse motivo com cor e leveza líricas em “História comum”, fábula sobre um alfinete que experimenta os acidentes da mobilidade social: começa prendendo o pano de chita à camisa de uma escrava, depois fixa a rosa no vestido de uma jovem que vai a um baile e de lá cai na copa do chapéu de um passante. O conto talvez ganhe uma graça adicional quando se sabe que foi publicado em "A Estação", revista que mantinha uma vigorosa seção literária mas dedicava-se sobretudo à moda. Sim, Machado de Assis, o grande crítico da sociedade brasileira do século XIX, colaborou com uma publicação cujo grande atrativo eram luxuosos figurinos europeus, em gravuras coloridas. Talvez tenha faltado ao programa do malogrado Romualdo essa versatilidade de que só os mestres da ironia são capazes.
Jerônimo Teixeira 

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