E surge a história...
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Verónica Cendoya |
Eu penso que, para criar uma história, é necessário, antes de mais nada, construir um mundo, o mais "mobilado" possível, até aos mais pequenos pormenores. Se eu construir um rio com duas margens e se, na margem esquerda, puser um pescador, se atribuir a esse pescador um temperamento irascível e um cadastro não muito limpo, pronto, poderei começar a escrever, traduzindo em palavras o que não pode deixar de acontecer. Que faz um pescador? Pesca (e eis uma sequência completa de gestos mais ou menos inevitáveis). E depois que se passa? Ou o peixe morde, ou não morde. Se morde, o pescador agarra os peixes e volta para casa todo contente. Fim da história. Se não morde, e dado que se trata de alguém irascível, talvez se encolerize. Talvez parta a cana de pesca. Não é grande coisa, mas já é um começo. Ora, há um provérbio indiano que diz: "Senta-te na margem do rio e espera, o cadáver do teu inimigo não tardará a passar." E se, arrastado pela corrente, passasse um cadáver, já que esta possibilidade está contida na área intertextual do rio? Não esqueçamos que o meu pescador tem um cadastro carregado. Quererá correr o risco de se meter em maus lençóis? Que fará? Fugirá, fingirá não ver o cadáver? Sentirá pesar sobre si todas as suspeitas, pois que, seja como for, este é o cadáver do homem que ele odiava? Irascível como é, irritar-se-á por não ter sido ele a realizar a vingança ardentemente desejada? Como vêem, bastou «mobilar» o mundo com quase nada e logo nasceu o começo de uma história. E também o começo de um estilo, porque um pescador a pescar deveria impor um ritmo narrativo lento, fluvial, o da espera paciente, mas também o dos sobressaltos da sua impaciente irritabilidade. Basta construir um mundo, as palavras vêm a seguir, quase sozinhas: Rem tene, verba sequentur.
Eugénio Lisboa
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