sábado, fevereiro 29

O vestido vermelho

Em Muanza o chão é muito extenso. Por baixo desse chão há uma nuvem. Essa nuvem engravida todos os anos e gera, de cada vez, um filho que, na nossa língua, se chama “mvura”. Os portugueses chamam-lhe “chuva”.

A minha casa nunca ganhou raiz nesse chão. Mudámos a casa de sítio, mas ela nunca deitou raiz. A minha avô – que sempre conheci cega – esgravatava a areia junto às paredes e proclamava: nada, não germinou. Houve um tempo em que ela chegou a regar as estacas de madeira que suportavam o teto.

Escutávamos o balde a chocar contra as paredes de adobe, ouvíamos as suas imprecações enquanto ela tossia como se pássaros lhe saíssem do peito. Depois, a avó desistiu. – Há outras razões – resmungou. – Os mortos são tantos que roeram a terra. É por isso que a nossa casa não pega. Não pode haver raiz onde deixou de haver chão.

Susa Monteiro

Há muito que traduzo nuvens e chuvas. As palavras da avó eram uma advertência: dentro da guerra em que vivíamos havia uma outra guerra. É por isso que hoje decidi pegar a estrada, afastar-me da desenraizada casa. Sou viúva e o único filho que me sobreviveu há muito que foi para a cidade. Finalmente, eu ia ter com ele, sem saber onde o procurar. Mas havia, ao menos, uma procura. Nessa procura, eu voltava a ser mãe. E ganhava a raiz que faltava à casa e que me faltava na vida.

Na minha aldeia há um ditado: uma mulher que enfrenta sozinha a estrada é uma mulher que está despida. Os homens estão autorizados a fazer com ela o que quiserem. Essa mulher pede para ser castigada. E foi sob o presságio da punição que caminhei pela estrada deserta. Da areia que pisava soltava-se um fumo de miragem. Caminhei até o sol me engolir a sombra. Foi então que, de uns arbustos, saiu um grupo de soldados. Cercaram-me como fazem as hienas a uma gazela. O mais alto deles deu uma volta em redor do meu corpo sem sombra.

– De quem é esta mala? – perguntou entre dentes. – Roubou-a a quem?

Permaneci calada. Estou habituada às perguntas que os homens me fazem. Não querem resposta. Apenas confirmação. Permaneci calada. A minha sentença foi ditada no momento em que nasci.

Aquela mala nascera uns anos antes, o meu falecido marido encontrou-a abandonada nesta mesma estrada. Teria tombado de um dos poucos autocarros que ainda se aventuram por estes lados. Mal chegou a casa, o meu homem abriu a misteriosa bagagem e vasculhou as suas entranhas. No meio dos empacotados pertences havia um vestido vermelho e aquilo era um pano feito para incendiar os olhos.

Pedi-lhe – marido, vamos dar esse vestido ao nosso filho que se vai casar. – Chamei o meu filho e ergui o vestido como um troféu de guerra, uma bandeira sobre a nossa antiga miséria. No momento em que o nosso rapaz, com os olhos cheios, se preparava para receber aquela prenda, o meu marido empurrou-o fazendo com que tombasse desamparadamente sobre a fogueira. As queimaduras foram tão graves que ele ficou coxeando da perna direita até ao dia em que ele fugiu de casa, da aldeia e do destino.

Na altura, ataquei o meu homem aos berros. Erro meu: a raiva ainda me fez mais invisível. Serenamente, o meu marido voltou a meter o vestido na mala, fechou-a com uma corda. Com a mesma corda amarrou a mala ao teto. E avisou-me que não tocasse nunca naquela sua propriedade – Vou vender o que está nessa bagagem e compro uma nova mulher – foi o que ele disse.

Numa tarde de bebedeira, ele partiu para a cidade e deixou a mala em casa. Não se esqueceu. Os homens da minha aldeia podem se esquecer dos filhos. Das suas posses, não. Dias depois, recebi a notícia de que o machimbombo em que ele seguia fora atacado. É o que espero que agora me suceda: que estes soldados me deitem fogo e não reste de mim senão cinzas, as mesmas cinzas que sobraram do meu falecido.

O soldado empurrou-me derrubando-me sobre a areia e enxotando de vez as minhas lembranças. Depois, ele mandou que me despisse. Fechei os olhos para não ver os meus panos tombarem no chão. Quando voltei a abrir os olhos vi que o soldado se começara a despir. Atirou a farda furiosamente para o capim como se o que nele fervesse fosse raiva e não desejo.

De novo, fechei os olhos com tanta força como se não me bastassem as pálpebras. Escutei os passos do militar e pensei – deixou as botas calçadas porque está com medo. Depois, restou um longo silêncio. Entreabri os olhos para surpreender o soldado, inteiramente despido, colhendo o vestido vermelho com a ponta dos dedos. Para minha surpresa, começou a vestir o vestido. Apesar de magro, o militar tinha dificuldade em apertar os botões. A barriga ficou comprimida e o sexo ficou de fora, ao pendurão como uma serpente escura. Sacudiu com vigor o membro e os outros riram-se às gargalhadas.

Quando o militar já se debruçava sobre mim gritei em prantos – Não faça isso, meu filho, que se vai desgraçar.

É que eu hoje saltei a Lua.

Na nossa terra não se fala sobre os sangues. É interdita a palavra como é interdito o corpo da mulher que sangra. O violador ergueu-se atabalhoadamente e avisou os comparsas – meus irmãos, aqui ninguém se pode servir. – O pranto toldava-me a visão e eu chorava apenas para deixar de ver o mundo.

Foi então que chegou um outro soldado. Não lhe distingui o rosto, mas percebi que era jovem, bem mais jovem do que os outros. Desatou a rir quando viu o companheiro vestido de mulher. Parou de rir quando me viu estendida, indefesa. Por um momento, fixou os olhos em mim até ser interrompido pelos berros do homem alto.

– Matamo-la – ordenou o violador. – Dizemos que foram os outros.

– Aqui não, meu comandante. – disse o soldado mais novo, que acabava de chegar. E como se tivesse que se explicar, acrescentou – As mulheres devem ser mortas dentro de casa. Fora só se matam os homens.

– Tem razão – admitiu o comandante. – Leve-a para as ruínas da escola e faça o seu dever.

O soldado jovem empurrou-me por um atalho como se estivesse apressado em cumprir ordens. Eu seguia à sua frente tropeçando nos meus próprios passos. Não via o rosto, não escutava uma palavra do soldado que me ia matar. Chegámos à escola, o edifício era uma ruína, mas tinha mais raiz do que muitas das casas novas da aldeia. O militar colocou-se atrás de mim e pendurou o vestido vermelho sobre o meu ombro como se usasse um cabide. Depois, senti junto ao rosto o disparo. Tombei, apagada do mundo, abraçada pela terra.

Quando reabri os olhos, eu estava dentro do sangue. Passei a mão para afastar um zumbido de mil abelhas e, sem querer, arrastei o vestido vermelho que me cobria o rosto. O soldado colocou-me a mão sobre a boca e segredou-me – Agora, vá-se embora, em silêncio. – E ele se retirou, a arma sobre o ombro. As armas pesam sobre as espáduas dos homens que são bons, pensei. Talvez fosse por causa disso que este pequeno soldado coxeava da perna direita.

– Espere – gritei – Leve o vestido.

Em Muanza, o chão é muito extenso. Por cima desse chão se desenhavam as pegadas desse soldado. Essas pegadas eram as minhas no meu regresso a casa. Começava a chover. E o vestido vermelho se ia descolorindo nos braços do soldado que se afastava todo encolhido por baixo da chuva.

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