sábado, fevereiro 8

O lobo do mar

Esperamos todo o dia que Lobo Larsen descesse em terra - e foram horas de intolerável ansiedade. A cada momento púnhamos os olhos na "Ghost", certos de vê-lo surgir. Mas não surgia. Não se mostrou na amurada uma só vez.

- Talvez esteja ainda com a dor de cabeça, sugeri. Deixei-o na popa e lá ficará a noite inteira. Estou com vontade de ir espiá-lo.

Maud olhou-me com ar reprovativo.

- Não haverá perigo, observei em tom de segurança.

Levarei os meus revólveres: você bem sabe que não há mais nenhuma arma a bordo.

- Mas há os braços, os músculos daquele monstro, as suas terríveis mãos. Oh, Humphrey, tenho um medo horrível! Não vá, não vá...

E Maud agarrou-me as mãos, fazendo-me acelerar o pulso. Meu coração mostrou-se nos meus olhos. A minha amada companheira! O sol, o orvalho da minha varonilidade penetrando-a cada vez mais fundo e fortalecendo-a com a sua seiva. E meu braço foi-se erguendo para enlaçá-la, como no dia das focas; mas reconsiderei a tempo e contive-me.

- Não arriscarei nada, repliquei. Apenas espiarei de longe.

Maud apertou-me com mais força a mão e deixou-me ir. A bordo notei que Larsen já não estava onde eu o deixara.

Havia descido, evidentemente.

Voltei, e aquela noite passamos em guarda, ora vigiando eu, ora Maud, porque era imprevisível o que Larsen poderia fazer.

O dia seguinte passamo-lo à espera do que desse e viesse, e também o terceiro.

Larsen igualmente não deu sinal de si.

- Está com a dor de cabeça, aventou Maud no quarto dia. Talvez muito doente, talvez morto... Ou morrendo, acrescentou depois de alguns instantes, como eu nada sugerisse.

- Melhor assim, Maud...

- Melhor assim, será, disse ela - mas não sabemos.

Seria terrível se fosse. Eu não poderia nunca perdoar-me o deixar morrer perto de mim uma criatura humana sem amparo no último momento. Temos de fazer qualquer coisa, Humphrey.

Calei-me, a pensar na sua solicitude por aquele monstro, ela que pouco antes não queria nem que eu me aproximasse da escuna. Maud era muito sutil para não compreender o que me passava pela cabeça - e foi direto ao ponto.

- Você precisa ir a bordo, Humphrey, e ver o que há, disse ela. E se quer rir-se de mim, tem meu consentimento e perdão.

Ergui-me, obediente, e encaminhei-me para a escuna. - Cuidado! gritou Maud de longe.

Acenei-lhe com a mão de cima do castelo de proa e pulei para o convés. Fui direto à cabina e gritei de certa distância. Lobo Larsen respondeu de baixo. Dirigi-me a ele, mas de revólver engatilhado. Durante toda a nossa conversação mantive-me assim, sem que ele, entretanto, notasse essa atitude. Larsen pareceu-me o mesmo - abatido, lúgubre.

Poucas palavras trocamos. Não perguntei por que motivo não descera à praia, nem ele inquiriu da minha presença ali. Sua cabeça melhorara, foi tudo quanto me disse.

Maud recebeu a nova com evidente alívio e a vista de fumaça na chaminé da cozinha acabou de sossegá-la. No outro dia, e ainda no subseqüente, vimos a mesma fumaça na cozinha e por vezes avistamos Larsen à popa. Foi só. Não fez ele menção nenhuma de descer em terra. Nós continuamos a passar as noites de vigília, sempre receosos dalguma insídia.

Assim decorreu toda uma semana. Nossa preocupação exclusiva era Lobo Larsen. A presença ali daquele homem nos impedia de pensar noutra coisa.

Lá pelo fim da semana a fumaça deixou de aparecer e Larsen não mais se mostrou à popa. A inquieta solicitude de Maud voltou, apesar de, timidamente ou orgulhosamente, evitar pedir que eu fosse vê-lo. Tudo bem considerado, como poderia eu levar a mal essa solicitude? Era o sublime do altruísmo da mulher. Além disso, eu mesmo me sentia incomodado à lembrança daquele homem a morrer sozinho, com dois semelhantes tão próximos. Larsen tinha razão. o código da gente do meu tipo era mais forte que os instintos. O fato dele possuir pés, mãos e corpo igual ao meu, estabelecia para mim deveres que eu não conseguia iludir.

Não esperei que Maud me mandasse para lá. Notando a nossa falta de leite condensado e geleias, anunciei que iria a bordo buscar uma provisão. Mas Maud estremeceu - chegou mesmo a observar que não eram coisas indispensáveis para nós.

E assim como de outra vez havia acompanhado a curva do meu silêncio, seguia ela agora no fio das minhas palavras, certa de que eu não tencionava ir à "Ghost" por causa daquilo apenas, e sim para sossegá-la da inquietação que lhe lia nos olhos.

Descalcei as botas ao chegar ao castelo de proa e caminhei sem ruído até à porta.

Alcancei a cabina. Deserta. Estava fechada a porta da câmara de Larsen. Pensei a princípio em bater; depois lembrei-me da razão ostensiva da minha visita e dirigi-me para a despensa. Ergui o alçapão sem ruído. E no meio de tantas provisões separei à vontade o que me aprouve.

Quando ia saindo ouvi rumor na câmara de Lobo Larsen. Agachei-me à escuta. A porta da cabina onde me achava moveu-se e o vulto de Larsen mostrou-se aos meus olhos no momento em que me entrincheirava atrás da mesa, de revólver engatilhado.

Jamais vi desespero tão profundo como o estampado em suas feições. Qual mulher em dores, o homem terrivelmente forte torcia as mãos e gemia. Depois correu os dedos pelos olhos, naquele seu gesto de afastar teias de aranha.

- Deus! Deus! Exclamou - e seus punhos fechados ergueram-se para o céu como a acentuar o desespero que vibrava na palavra.

Era horrível. Eu tremia todo, com arrepios a percorrerem-me a espinha e suor a gotejar-me da testa. Nada mais aterrorizante neste mundo que o espetáculo dum homem forte que cai.

Mas Lobo Larsen breve readquiriu o controle de si próprio num impressionante esforço de vontade. Vi que era esforço supremo. Seu arcabouço estremecera na luta. Deu-me a sensação dum homem à beira da queda. Sua face lutava para readquirir o equilíbrio, retorcendo-se num ajeitamento. Uma vez mais estorcegou as mãos e rugiu. Respirou fundo, soluçou. E voltou a si. Era de novo o velho Lobo Larsen, embora sugerindo um pouco de fraqueza e indecisão. Não se demorou ali. Fez-se de volta para a escada - e notei que também o seu andar não tinha a firmeza de outrora.

Comecei a apavorar-me. O alçapão ficava diretamente na sua passagem e se ele o visse aberto sem demora me descobriria. E descobrir-me-ia agachado, como um ladrão que se insinua em casa alheia. Ergui-me então desafiadoramente e enfrentei-o. Larsen não deu sinal de ver-me, nem notou o alçapão aberto. Caminhou para ele como se estivesse fechado, e já com um pé no buraco ia caindo quando o seu instinto o fez dar para a frente um daqueles famosos saltos de tigre. Veio cair de peito bem sobre as minhas provisões.

A expressão que lhe vi no rosto foi de compreensão integral de tudo. Mas antes que eu pudesse adivinhar o que ele havia compreendido, Larsen fechou a tampa do alçapão, supondo-me lá dentro. Estava cego, mais cego que um morcego! Pus-me a observá-lo, retendo o fôlego a fim de não ser percebido ali. Larsen dirigiu-se à sua câmara e apalpou a porta para alcançar o trinco. Aproveitei a chance e fugi da cabina. Larsen reapareceu com uma pesada poltrona, que colocou sobre a tampa do alçapão; não contente, arrastou para lá vários outros móveis. Em seguida tomou as provisões, que eu pilhara e sobre as quais ele caíra de peito, e pô-las sobre a mesa. Quando saiu dali de rumo à escada, voltei para a cabina.

Larsen ficou no topo da escada, com os braços em repouso num rebordo. Sua atitude era a de um homem que olhasse para a frente ao longo da escuna, ou que contemplasse fixamente alguma coisa, pois não piscava. Eu me pusera a pequena distância, sentindo-me qual fantasma invisível. Aproximei-me. Agitei minha mão diante dos seus olhos, sem nenhum efeito; mas quando a sombra lhe passava pela retina vi que recebia qualquer impressão. Sua face tomava-se mais tensa, como no esforço de identificar o que era aquilo. Pressentia por ali algo móvel, sem conseguir apreender o que fosse. E moveu vagarosamente a cabeça para a frente e para trás sob a sombra, e voltou-a à direita e à esquerda, ora na parte batida de sol, ora na sem sol, comparando as duas sensações na ânsia de adivinhar o que era.

A mim também me preocupava saber como podia ter ele a sensação, cego como se achava, duma coisa tão intangível como a sombra. Se apenas os glóbulos oculares estivessem afetados e os nervos óticos ainda não de todo destruídos, a explicação seria simples. Em caso contrário, então era que a sensibilidade da pele estava tentando substituir a visão destruída. Ou tratava-se de um sexto sentido?

Abandonando a tentativa de localizar a sombra, Larsen atravessou o convés com firmeza e rapidez que me surpreenderam, embora sempre com aquela ponta de imprecisão que eu já lhe notara. Estava realmente cego.
Jack Londom, "O lobo do mar" (excerto) 

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