Mesmice e solidão despertam carências. A gente procura saídas na escrita, na leitura, nas lembranças, nos contatos remotos em que pessoas sem rosto tornam-se apenas voz ou letras. Assim sobrevivemos há meses, num voo de pouca autonomia e alguma turbulência.
Acabo de voltar de mais uma viagem ao passado. A coluna de culinária do jornal diário acordou a saudade da distante infância e da avó. Era uma prosaica receita de ovos nevados, uma de minhas sobremesas preferidas de então, servida em dias especiais à mesa da matriarca.
Mas havia muito mais a saborear do que o doce delicado cujo preparo as crianças não acompanhavam. Vinha para a mesa em uma bela terrina, vermelha por fora e branca por dentro, o que realçava o conteúdo. O mesmo recipiente em que a avó batia a massa do bolo da tarde com colher de pau, a meu lado, no banco de jardim confeccionado pelo avô. Lembro de pelo menos dois bônus: ela me contava histórias enquanto misturava os ingredientes com vigorosos movimentos e, ao passá-los para a forma, deixava que provasse as sobras, antecipando a delícia.
Com poesia no DNA, ovos nevados para mim eram nuvens brancas, iguaizinhas às do céu, boiando num creme amarelo. O mesmo céu onde, encantada, eu via aviões desenharem com fumaça corações e o nome de alguma namorada ou esposa. Ou flutuarem pipas coloridas, oscilando ao vento.
A sobremesa durava o tempo da refeição, nunca sobrava para mais tarde. E agora, com imagem e receita impressas no jornal, chegaram de volta o perfume do creme de baunilha, o efêmero das nuvens que desmanchavam na boca, a terrina, as vozes e risos, a lembrança de um tempo de breves e ingênuos prazeres.
Madô Martins
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