Minha filha reluta em dormir, acha sempre o que fazer para ir invadindo cada vez mais a madrugada. Sua vontade é ver o sol nascer, a biblioteca da sala toda avermelhada. Foi assim que fizemos um trato: mamãe se incumbe de atravessar a madrugada e colher notícias de tudo o que acontece enquanto ela sonha um sonho que depois vai me contar.
Colho o planeta Marte, as três Marias, os berros do louco na avenida, a sirene de polícia, o choro da gata no cio, a janela do prédio em frente que nunca se apaga, a cantoria dos sabiás. Deixo sobre o sofá minhas notícias para quando ela acordar. É nosso milagre particular de multiplicação do tempo, sobrepor ao sono um continuum de eventos reais ou inventados, visões de estrelas cadentes, trovões e o sininho frenético na varanda, triângulo da orquestra na chuvarada. Minha filha começa o dia atando-o à pregressa madrugada, como se afinal não tivesse perdido nada, como se soubesse sem saber que, por mais aventureira e venturosa que seja, essa vida continuará a ser sempre um sopro.
A morte não lhe é completamente estranha, já viu uma lagartixa graúda, que morava no banheiro da casa da avó, um dia reaparecer miúda, inerte e ressequida no parapeito da janela. De propósito, mas como quem não quer nada, lembrei minha menina da finada lagartixa, para emendar que assim é vida, meu amor, acontece com todos que nascem, isso de crescer, espichar a cauda, sair por aí, sumir e voltar, depois morrer. Acontece com todo mundo. Minha filha então me olha nos olhos e faz a pergunta esperada e fatal: “Com a gente também?”. “Comigo também?”. “Com você?”. “Com o papai?”. “A vovó?”. “O vovô?”.
Vou caindo da delicadeza para o mau sabor de arrolar com essas perguntas toda a nossa pequena família numa carreira de futuras lagartixas secas, quando é ela, minha menina, que desdramatiza a morte, dá por encerrada a conversa e vai brincar lá fora. Um instante só, pungente e rápido como um raio, que vi em seus olhos um lago escuro e nele como que todas as despedidas concentradas. Uma tristeza rápida como um susto, um sofrer bem, sem desperdícios, que o dia hoje está bonito, a vida é o que é, e nós temos o nosso trato.
Mariana Ianelli
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