Escha Van den Bogerdo |
Esta casa que eu tanto imaginara, querendo ver levantados os cheiros, as paredes, circula no entanto como um redemoinho de pós e de bolores em torno das chinelas de Perpétua. O que quer que existiu aqui está já desfeito. Não houve tempo para que a podridão tratasse dos lugares a seu modo, um por um, conforme os usos, conforme as horas que lhes foram dedicadas. É um corredor velho e sem memória. Está reduzido à sua própria sombra. "Olhe se põe um pé em falso, olhe o soalho", diz a mulher, mas não me guia os passos. As suas chinelitas de fazenda parecem saltitar, tomam-se leves e como que doiradas naquela escuridão, brilham e apagam-se à maneira dos insectos. A madeira ressoa cavamente, está feita um algodão, fofa, sem consistência. E os passos flutuam numa fascinação de pesadelo.
O que há por trás das portas? vou dizendo. Nada, coisas, responde. Bicharada. Há com certeza luz, vidraças por abrir. A caseira rirá, terá essa luxúria de me pôr aos tacteios, de me fazer talvez torcer um tornozelo, limpa que traz a superfície de consciência. "Bem avisei, não quis tomar cautela..." Terminando-se assim esta intrusão em acabrunhamento, em vergonha dorida. "Uma estranha, dirá, depois, na padaria, chegar ali como uma estranha, a querer ver tudo." E encolherá os ombros, indignada.
"Pronto, aqui era o quarto", diz Perpétua e cola-se à ombreira para me deixar passar. Avisto a colcha de algodão adamascado, cor de romã, ainda arrepanhada, sob uma manta e os estilhaços do entulho. "Vê a perna da cama? É com os livros. Ou vinha tudo por aí abaixo."
A casa deve ter os seus recursos para se limpar de todas as presenças. Faz sentir que jamais alguém aqui entrou. O espírito dos anos lambeu-se e sacudiu-se como um bicho de pêlo. E tudo se tomou silencioso e vazio.
"Não esteve aqui ninguém", penso em voz alta. Mas a mulher aceita a frase sem ouvir, põe-se de novo a chinelar à minha frente. Leva-me ao rés-do-chão, ao lado da cozinha, ao que fora talvez uma casa da lenha, um cubículo fresco, com janelo. "Aqui, trazia-a mais debaixo de olho."
Há como que um instinto narrativo na escala com que ordena esta visita, um faro que estabelece e isola os fulcros onde o que quer que fosse de ousado e misterioso veio a ter um lugar. Também aqui não restam vestígios da sobrinha, a não ser umas tachas que afixavam decerto cartazes nas paredes. "Tinha aí um divã, as roupas numa cesta. Queria era tomar banhos que eu sei lá."
Aos poucos reencontra o gosto pela fala. Aliviou o medo e eu prefiro parar de lhe fazer perguntas. Dá-me entrada na sala de jantar onde os aparadores descaem levemente porque o chão abateu. Na grande mesa de castanho, aberta, amontoam-se malgas amarelas, garrafões com a palha apodrecida. No lambril de azulejos há emendas absurdas, pastoras e moinhos cortam aqui e além aquilo que parece um antigo painel com cenas de tapada. Junto às duas janelas com banquinhos, alguém deu grandes chapadões de cal para alisar o esventramento da parede.
Perpétua faz subir uma vidraça, debruça-se a cheirar as árvores, o terreiro, e isso fá-la cobrar alguma cor. "Sentava-se-me aqui, diz ela, a tarde inteira." Não compreendo acerca de quem fala. O sol-poente pega-lhe ao cabelo um fogo quase negro, de carvão.
Dos buracos do chão vem o bafo das velhas areias de uma adega onde durante muitos anos azedaram as espumas do vinho que fervia. Não sinto encantamento algum em tudo aquilo e é por isso que faço brutalmente a pergunta:
— Acha que não passou de uma história de amor?
A mulher vira a cara para mim, mas por acção do sol ou do que quer que seja, deixou completamente de me ver.
— Assim — insisto ainda — como nestas novelas?
Ela sacode os ombros, fatigada. Conduz-me, chinelando, para a saída, tomada de repente por uma pressa, um tique de ansiedade. Dir-se-ia que quer expulsar-me antes da noite. À porta, ri-se e encara-me por fim:
— Aquilo foi o diabo. E o que foi.
Fica a dizer-me adeus, hospitaleira, amável, tendo aos pés o cão fulvo que a chegada da noite agora arroxeou.
Hélia Correia, "A Casa Eterna"
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