R.G. era um demônio. Mais atleta, mais afeito à terra que qualquer um de nós, era uma espécie de Tarzan, filho do mato e do rio, diante da nossa meia tendência para o asfalto. Numa tarde, resolvemos caminhar pela estrada de ferro − e outra coisa não pretendíamos senão dar uma olhada na filha de um vigia novato, morena carregada, de olhos verdes e longas tranças que, de tardinha, lavava os pés, enfeitava a cabeça com uma flor e vinha para o patamar de casa tocar viola de 12 cordas e cantar "Sussuarana". No meio do caminho, demos com a ponte de ferro, feita de trilhos, dormentes e mais nada, onde só o trem podia passar. R.G. teimou que atravessar seria uma canja, andando por cima dos dormentes. E se o trem viesse? − aventamos essa perigosa possibilidade. Não ligou. Nós ficamos no barranco do Rio e ele começou, sozinho, a travessia. De repente, parecia coisa do diabo, o trem saiu da curva, a cem metros da ponte. R.G. ia exatamente na metade e não tinha tempo de correr para frente ou para trás. Fechamos os olhos, pensamos em Deus por sua alma de 16 anos. O trem passou, houve um minuto de pausa e, depois, R.G. apareceu no mesmo lugar, fazendo gestos vegetais e gritando que não seria a locomotiva da Great Western que o mataria tão jovem. Garoto de incrível presença de espírito, quando viu o trem à sua frente, agachou-se, segurou, com as mãos, um dos dormentes e deixou o corpo pendurado. Depois que passaram os 12 vagões, suspendeu-se como num exercício de barra e começou a rir do estado de pânico em que estávamos. O maquinista, ao chegar à estação de Gameleira, a dois quilômetros dali, entregou-se à polícia, confessando que tinha matado um menino da usina Cachoeira Lisa.
Primos e primas, seis moças e seis rapazes, resolveram passear a cavalo num engenho nosso, que se chamava Cuiambuca. Saíram de madrugada e prometeram voltar às três da tarde. Acontece que deu sete horas, estava quase escurecendo e nada deles voltarem. Como era negócio de moças e rapazes, embora primos, as mães ficaram meio assustadas. Eu e Tião, porém, sabíamos que o grupo voltaria são e salvo. Planejamos ir para Volta da Jaqueira, lugar frequentado por fantasmas e almas penadas. Quando os cavaleiros surgissem, Tião, embrulhado num lençol, iria para o meio da estrada e ficaria parado, rezando, aos berros, uma jaculatória pelo repouso dos espíritos desassossegados. Fiquei atrás da jaqueira e quando ouvi o tropel dos cavalos, mandei Tião, com o seu lençol, para o meio do caminho. Nossos primos, tomados pelo susto, em vez de correr, baixaram os rebenques no pobre do Tião que, durante 15 minutos, apanhava e gritava: "Não tem graça, não. Vocês sabem que sou eu". Do meu esconderijo, queria intervir, mas a crise de riso era tanta, que não conseguia sair do lugar.
São estas as pobres e perdidas recordações embora sem ternura para os outros de que me sirvo nos dias de saudade. Meus 15 primos, espalhados, desarrumados no mundo (um deles é frade dominicano, em Paris) são, hoje, nestas coisas que conto, minha única maneira de voltar ao moleque da campina, que não sabia nada e era rei de tudo, para quem o remorso foi uma simples palavra do catecismo, no tempo em que a reza da noite redimia as viagens impossíveis do sexo. Não desprezeis minhas humildes saudades, mas buscai, em vossa meninice, lembranças parecidas com estas e elas vos restituirão um certo apego, um pouco de bem-querer aos dias de hoje, tão sem graça em sua maioria.
Antônio Maria, "O jornal de Antônio Maria"
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