Não estranhe se, daqui a uns meses, ao consultar a lista de livros mais vendidos publicada pelo GLOBO, você notar a ausência de “A revolução dos bichos”. Ou encontrar uma outra obra de George Orwell que você não conhecia chamada “A fazenda dos animais”. Não se trata de um inédito que passou décadas perdido no fundo de algum baú, mas da mesmíssima história da bicharada rebelde na Granja do Solar. Passados quase 60 anos de sua primeira publicação, o livro chegará pela primeira vez às livrarias brasileiras com um título mais próximo do escolhido pelo autor britânico: “Animal Farm”.
A primeira publicação da obra no Brasil foi bancada pelo Instituto de Pesquisa Social, o IPES, que, junto com o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), entulhou o país de propaganda anticomunista nos anos que precederam o golpe militar de 1964. O tradutor foi o então tenente Heitor Aquino Ferreira, secretário do general Golbery do Couto e Silva, criador do Serviço Nacional de Informações (SNI) da ditadura. Na década seguinte, já capitão, Ferreira foi secretário particular do general Ernesto Geisel, que presidiu o país entre 1974 e 1979. Também foi ele quem acumulou a papelada sobre a qual Elio Gaspari, colunista do GLOBO, se debruçou para escrever cinco elogiados volumes sobre a ditadura.
Embora Orwell fosse um socialista convicto e tivesse lutado ao lado de trotskistas na Guerra Civil Espanhola, experiência que inspirou o livro “Homenagem à Catalunha” (ou “Lutando na Espanha”, dependendo da tradução), “Animal Farm” e “1984”, livros que satirizavam o totalitarismo soviético, foram apropriados pelos anticomunistas durante a Guerra Fria. Até a CIA ajudou a divulgá-los e a espalhar por aí que toda revolução termina em regime de terror. Em “Animal Farm”, após o triunfo da rebelião, o porco Napoleão acusa o também porco Bola de Neve de traição, expulsa-o da Granja do Solar e se torna líder da bicharada. Com o apoio de cães ferozes, passa a governar como um ditador.
No posfácio à edição de “A fazenda dos animais” que a Companhia das Letras lança agora em novembro, Marcelo Pen, professor da Universidade de São Paulo (USP), cita uma carta, datada de 1962, na qual Ferreira inclui a fábula orwelliana numa lista de “obras de grande valor como propaganda anticomunista” que seu “grupo no Exército” estava enviando a “editores amigos”. “A revolução dos bichos” foi publicada pela editora Globo, de Porto Alegre, em 1964. O IPES prometeu comprar parte dos exemplares se a história encalhasse nas livrarias (o que, no início, aconteceu). Em 1966, financiou a publicação de “1984”.
Não é fácil concluir se Ferreira interveio politicamente no texto, mas Pen aponta algumas escolhas que se distanciam do original. Em inglês, os versos da canção “Bichos da Inglaterra” afirmam que, um dia, os animais serão livres, mas a versão de tenente promete apenas uma etérea “liberdade nas alturas”, como se fosse um hino religioso. A maior intervenção, no entanto, foi no título, que ocultou o que o Orwell decidiu enfatizar: após a rebelião, os explorados se tornaram donos da terra em que trabalhavam, a fazenda não era mais do sr. Jones, mas dos animais.
— O novo título não tem a sonoridade de “A revolução dos bichos”, mas recupera e sublinha o espírito que motivou a rebelião dos personagens: a fazenda passa a ser deles. No fim, ela deixa de ser, porque um grupo toma posse do que deveria pertencer a todos — diz Pen. — “A revolução dos bichos” implica outra ordem das coisas. Sem contar que a palavra revolução não aparece no original.
O termo que aparece algumas vezes ao longo do texto original é “rebellion” (rebelião), que Ferreira traduziu por “revolução”. Para a tradutora Denise Bottmann , “tal escolha devia fazer parte da tática de ‘guerra de propaganda’”. Ela defende a adoção do título “A fazenda dos animais”.
— Ninguém é obrigado a se render a um título “consagrado” — diz. — Aliás, o título “A revolução dos bichos” só veio a se consagrar por ser a única tradução existente entre nós durante quase 60 anos.
Denise é autora da tradução que a L&PM irá publicar no ano que vem, já com o “novo” título. "O porco triunfante".
O mesmo fará a Autêntica, que lança em janeiro sua edição, traduzida por Fabio Bonillo. A Antofágica, por sua vez, encomendou a versão da fábula em português a Rogerio Galindo. Publica em 2021, também, mas ainda não decidiu que título irá usar. E a Companhia das Letras decidiu manter duas traduções em catálogo: “A revolução dos bichos”, de Ferreira, e “A fazenda dos animais”, de Paulo Henriques Britto.
— A tradução de Ferreira, além de muito boa, é parte da história de “Animal Farm”, e a partir dela podemos pensar em aspectos importantes relacionados a política e literatura, política e tradução — afirma Emilio Fraia</a>, editor da Companhia.
A Novo Século e a Globo Livros, que também preparam suas edições da obra, optaram por manter o título original. “A revolução dos bichos” sairá com novas traduções assinadas, respectivamente, por Luisa Geisler e Petê Rissati, em janeiro. Para Lucas de Sena Lima, editor da Globo Livros, o título de 1964 acrescenta “camadas de sentido à leitura da obra”. Luisa reconhece que cogitou trocar, mas se decidiu por manter “A revolução dos bichos”.
— Senti que havia mais ganho em manter o título canonizado, porque podemos ressignificá-lo. O nome não é estático. Ele cria relações com a palavra “revolução” tanto em 2020 quanto com a história de tentarem usá-lo como propaganda — diz.
As edições brasileiras de “Animal Farm” são as únicas que enfiaram “revolução” no título. A maioria das traduções pelo mudo é literal, mas houve quem fizesse outras escolhas, mais ou menos esdrúxulas. Os espanhóis optaram por “Rebelión en granja” (Rebelião na granja). Os portugueses inventaram títulos como “O porco triunfante” e “O triunfo dos porcos”, em referência aos animais que lideraram a revolta na Granja no Solar. Recentemente, talvez por seu famoso apego à literalidade, eles optaram por um título menos controverso, mas que ainda guarda um charme lusitano: “A quinta dos animais”.
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