– A vida inteira me deixei levar pelo vento – disse a gaivota. A voz dela era suave e, no entanto, levemente arranhada, como um lenço de seda que tivesse ficado muito tempo abandonado ao sol
– Isso acabou. Agora sou eu quem sopra o vento.
Susa Monteiro |
Despertou. Pensou em voltar-se e abrir os olhos, para ver a quem pertencia a voz, mas sentia-se bem assim, com o sol dançando nas suas costas. Não se moveu. Quando se voltou e abriu os olhos, ela já não estava lá. Duas semanas mais tarde, manhã de domingo, encontrava-se na cozinha, a estrelar ovos, quando uma voz, no rádio, o arrancou dos seus pensamentos. Correu para a sala. Aumentou o volume. Confirmou, agitado: sim, era a mesma voz que escutara na praia!
– A vida na Terra surgiu por acaso ou por necessidade? – interrogava-se a voz. – Surgiu porque não podia ser de outra forma, porque tinha de ser. Surgiu por necessidade.
Calou-se. O locutor anunciou o fim da entrevista e logo colocou no ar uma canção de Gilberto Gil: “Não tenho medo da morte / mas, sim, medo de morrer.”
Maciel sentou-se no sofá, esquecido dos ovos que estalavam na frigideira: quem seria aquela mulher? Começou a imaginar rostos que se adaptassem a uma voz assim. Tinha de ser ruiva, com uma cabeleira em chamas e uns olhos azuis de fim de mundo. Durante 15 dias sonhou com ela. Então, numa outra manhã de domingo, mais quente ainda do que a primeira, o telefone tocou. Maciel atendeu. Do outro lado acendeu-se a inconfundível voz:
– Bom-dia! É o senhor Maciel?
Maciel confirmou, trémulo, as mãos suando. A voz – aquela voz vermelha que o perseguia em sonhos – explicou que precisava urgentemente dos serviços de um canalizador: “Tenho a cozinha inundada. Acho que um cano rebentou.” O canalizador anotou o endereço, tomou um duche, perfumou-se, vestiu o uniforme, juntou o equipamento, saiu para a rua e entrou no seu carro, preparado para conhecer a ruiva mulher da sua vida. O GPS deixou-o diante de uma vivenda ampla, num dos bairros mais caros da cidade. O portão estava aberto, de forma que Maciel entrou e acionou a campainha. Abriu-lhe a porta um homenzinho pequenino, redondinho, com olhos estreitos e um cabelo muito negro e sedoso, que parecia ter sido cuidadosamente passado a ferro e depois colado ao crânio. Olharam-se os dois com mútua antipatia.
– Sou o canalizador – esclareceu Maciel, antes de prosseguir, convicto de que o outro fosse um dos empregados, talvez o jardineiro. – A sua patroa ligou para mim.
O homenzinho empertigou-se:
– Sou o patrão de mim mesmo!
Maciel recuou dois passos, assombrado. Era ela, a mulher da sua vida. Ou, então, o homenzinho engolira a mulher da sua vida. Roubara-lhe a voz. O outro estranhou a reação:
– Aconteceu alguma coisa?
Maciel desculpou-se: o calor sufocante daqueles dias provocara-lhe uma tontura momentânea. O homenzinho deixou-o entrar. Conduziu-o à cozinha. Ofereceu-lhe um copo com água. Baldes e toalhas amontoadas no chão testemunhavam o desastre recente. O canalizador não demorou a encontrar o problema. Enquanto trabalhava, suando, sentia-se morrer. Apaixonara-se por uma mulher que nunca existira. Pior: apaixonara-se por uma mulher ruiva que era, afinal, um homenzinho gordo. Se fosse cego, pensou, continuaria apaixonado. Poderia até casar-se com aquele homenzinho gordo. À noite, na cama, o homenzinho gordo leria para ele os romances esquecidos de Camilo Castelo Branco (Maciel gostava de Camilo), e seriam felizes. O problema, portanto, era ter visto o homem. Agora que o vira, falando com aquela voz discordante, nunca mais conseguiria desvê-lo. Negou-se a receber o valor do conserto e regressou ao carro, cabisbaixo, apagado, respirando com dificuldade o ar ardente da manhã.
Passou dias deprimido. Era como se lhe tivesse morrido o futuro. Um amigo, vendo-o assim, a cada manhã mais murcho, mais curvado, convidou-o para sair. Levou-o a uma festa, no terraço de um prédio quase em ruínas, iluminado a custo por meia dúzia de velas colocadas dentro de altos copos de vidro. Uma centena de pessoas dançava ao som de ritmos cubanos. Maciel sentou-se a um canto, saboreando uma caipirinha, enquanto via o amigo desaparecer por entre as sombras dançantes. Subitamente, um golpe de vento chicoteou o terraço. Voaram chapéus. Ouviu-se um quebrar de cristais, enquanto os copos rolavam no chão e as velas se apagavam. A música extinguiu-se. Então, no negrume abrupto, Maciel sentiu passar um perfume de mulher – e voltou a apaixonar-se. Como sempre, também essa paixão terminou mal.
– A realidade traiu-me de novo – queixou-se ao amigo.
O outro riu-se, trocista
– Não. O que se passa é que a realidade tem mais imaginação do que tu.
Maciel teve de lhe dar razão.
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