quarta-feira, agosto 25

Manuscritos

Eu abrira-me em confidência a Mrs Prest; e é verdade que poucos progressos teria feito sem ela, porque dos seus lábios amigos saiu a frutuosa ideia de todo este caso. Foi ela quem inventou a solução expedita, quem desatou o nó górdio. Acha-se, em geral, que não ascende da natureza feminina nenhuma vista larga nem dotada de grande liberalidade; refiro-me a uma solução prática; mas por vezes tive a sensação de que sabe afoitar-se a arrojadas concepções — de que nenhum homem seria capaz — e com singular serenidade. “Limite-se a pedir-lhe que o aceite na condição de hóspede." — Sem ajuda, penso que não teria lá chegado. Eu andava com rodeios, esforçava-me por ser engenhoso, por pensar que combinação de artes seria capaz de fazer-me chegar a um relacionamento, quando me deu esta feliz sugestão: para chegar ao seu relacionamento eu teria, primeiro, de ser considerado um familiar da casa. Naquela altura ela não conhecia muito mais do que eu as Misses Bordereau; e eu até trouxera da Inglaterra alguns fatos precisos que lhe eram desconhecidos. Em épocas remotas tinham tido o nome ligado a um dos maiores nomes do século, e naquela altura viviam obscuramente em Veneza e com muito reduzidos meios, sem visitas, inabordáveis num velho e degradado palácio de um canal retirado dos circuitos habituais: era o mais concreto que a seu respeito a minha amiga sabia. Há cerca de quinze anos ela própria se instalara em Veneza e tinha-se entregue a uma grande quantidade de obras caridosas; mas o círculo da sua beneficência não incluía as duas americanas tímidas e misteriosas (era por assim dizer suposto que no seu longo exílio tivessem perdido todas as características nacionais; para além de terem na sua origem, como o nome denunciava, um qualquer ramo francês) que não pediam favores e desejavam passar despercebidas. Nos primeiros anos em que ali residiram, Mrs Prest fizera uma tentativa para as encontrar, mas só tivera êxito com a “pequena”, chamava assim à sobrinha, apesar de ser a maior das duas como verifiquei pouco depois. Soubera que Miss Bordereau estava doente e suspeitava de que vivesse com dificuldades; fora lá a casa oferecer os seus préstimos para não ficar, ao fim e ao cabo, com um caso de penúria (uma penúria americana) a pesar-lhe na consciência. A “pequena” recebeu-a na grande, fria e embaciada sala veneziana, a divisão central da casa com pavimento de mármore e tecto de escuras vigas cruzadas, e nem sequer lhe tinha dito para se sentar. Isto não me encorajava muito porque desejava lá ter com rapidez um assento e, tanto quanto pude, fi-lo saber a Mrs Prest. Foi no entanto com profunda argúcia que me respondeu: “Ah, mas toda a diferença está aí; eu ia fazer-lhes um favor, e o meu amigo vai pedir que lhe façam um. Se forem orgulhosas, surgir-lhes-á do lado favorável.” E começou por se oferecer para ir mostrar-me a casa — levar-me até lá na sua gôndola. Fiz-lhe saber que já tinha ido vê-la meia dúzia de vezes, mas aceitei o convite porque me encantava vaguear por aqueles sítios. Logo um dia depois de chegar a Veneza eu tinha lá ido (antes, na Inglaterra, fora-me descrita por um amigo, e fui convencido de que elas estavam na posse dos manuscritos), e com o olhar assaltara a casa enquanto meditava no plano de ataque. Que fosse do meu conhecimento, Jeffrey Aspern nunca lá estivera mas a sua voz parecia ter ali, como indireta consequência, o eco fraco de uma ressonância.
Henry James, "Os manuscritos de Aspern" 

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