Dor de cabeça, dor no corpo, nas juntas. Tosse. Nariz entupido, tosse, calafrios. Vertigem. Enjôo, astenia (tosse), sonolência, pesadelo. Na boca, gosto de ferrugem, de azinhavre. De sono velho, já dormido, cabo de guarda-chuva. Comprimidos, injeções, bulas de remédio, barba crescida, olhos ardentes, tosse, tosse, tosse.
Espicho-me na cama, o peito arfante, olhos esbugalhados para o teto, e aguardo os acontecimentos. Diminuí de tamanho, sou um menino magrinho na minha cama de grades, aguardando a chegada do médico. O médico da família entrando no quarto, a toalha alvíssima de bordado, só para essas ocasiões, estendida no peito do menino. A cabeça do médico reclinada auscultando, aquele cheiro de cabelos penteados, já meio ralos ali no meio. E o relógio de ouro com corrente, na hora de tomar o pulso. E as pancadinhas com o dedo sobre outros dois dedos ao longo das costas, respire fundo, torne a respirar. A penumbra do quarto com a faixa de sol onde a poeira dança, faiscante como milhões de estrelas. A caneta riscando o silêncio ao passar a receita na mesa da sala. Perspectiva de alguns dias sem colégio ainda afogada em mal-estar. E o ritmo a que tudo passa a obedecer, lento, implacável, hora certa do remédio, o mistério da vida quase desvendado ao mais tênue sopro da morte. E a mãe se engrandecendo, onipresente, deslizando silenciosa e protetora, anjo da guarda, rainha do lar, absoluta em seu reinado.
Meu corpo vai pegar fogo, estou nadando em suor. Já não sou menino, mas continuo na casa onde nasci, perambulando pelos quartos. Em vez de encontrar pessoas de minha família, encontro chineses acampados por tudo quanto é canto. Moços, velhos, crianças, mulheres, tudo com olho rasgado e aquele sorriso de chinês, sacudindo a cabeça à minha passagem. Transformaram minha casa em hospedaria de imigrantes — é o que concluo, abrindo caminho entre chineses silenciosos. Devem ter vindo todos de Hong-Kong. Pergunto a uma mulher com um menino às costas quem é que manda por aqui. Ela me indica com o olhar um chinês velho e decrépito de bigodes compridos, cabeceando a um canto. Dirijo-me a ele: sei que venderam minha casa, mas lhe pediria licença para ficar aqui ao menos esta noite… Uma velha toda enrugada resmunga do outro lado: fazer tanta questão de ficar numa casa destas, caindo aos pedaços… Não fale mal da casa onde eu nasci! — protesto, avançando para ela, mas sorrindo logo em seguida, porque me lembrei que para os chineses o sorriso é uma espécie de senha, que altera o sentido das coisas. E quando as atenções da chinesada se voltam para mim, declaro solenemente:
– É verdade: esta casa não foi a melhor de todas em que eu morei. Antes de me mudar para aqui é que eu morava numa casa magnífica, confortável, como jamais existiu outra no mundo.
Faço uma pausa e acrescento — em inglês, para impressioná-los mais:
– My mother’s womb.
Como ninguém diz nada e nem parece ter entendido, saio correndo porta afora: vou para meu apartamento no Rio, que bobagem é essa…
Salto da cama e olho o relógio: sete horas da manhã. Estou curado! Foi-se a febre e a cabeça descansa leve sobre os ombros. Dou dois passinhos lépidos, para experimentar: não sinto nada. Acendo um cigarro: voltou a ter gosto de cigarro. O monstro que fui esses dias me espia, barbado e descabelado, de dentro do espelho. Tomo banho, faço a barba, visto-me e saio para a rua. O sol me entontece um pouco, mas aceito o desafio e vou em frente. Detenho-me no botequim da esquina para um cafezinho, enquanto inspeciono o ambiente aqui pelo bairro. Aparentemente tudo vai indo em ordem: na praça, as empregadas empurram carrinhos, meninos brincam, passam ônibus meio vazios. Na banca de jornais compro uma revista e vou andando. Sento-me num banco e deixo-me ficar, revista esquecida ao colo, pensando em como é estranho ainda haver hoje em dia manhãs como esta. De dentro de mim mesmo, da escuridão em que trabalham as minhas vísceras, vem nascendo uma sensação inquietante como a expectativa de uma dor… Mas eu estou curado! — procuro convencer-me, apreensivo.
Estou curado apenas de uma gripe. É pouco, para quem um dia vai morrer. E me encolho dentro de meu corpo, como num ventre.
Fernando Sabino
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