Em boa verdade, eu deveria estar a narrar os acontecimentos que ocorreram após 1979, mas os meus pensamentos não param de me levar para aquela tarde do Outono de 1969, em que o sol brilhava intensamente, os crisântemos dourados estavam em plena flor e os gansos selvagens cumpriam a sua migração para sul. Sempre que chego a esse ponto, não consigo desenredar-me dos meus pensamentos. As minhas memórias carregam o meu “eu” daquela época, um rapaz solitário que fora expulso da escola mas que se sentiu atraído pelo alarido que chegava do recreio. Eu esgueirara-me por entre o portão sem vigilância, com o coração na garganta, e atravessara aquele corredor comprido e melancólico para aceder ao quadrângulo central da escola, um pátio rodeado de edifícios. À esquerda ficava um poste de carvalho com uma trave presa por arame, na qual se pendurava um ferrugento sino de ferro. Mais para a esquerda, duas pessoas iam jogando pingue-pongue numa simples mesa de betão com base de tijolos, sob o olhar ávido de uma multidão que era a fonte do tal alarido. Estávamos na interrupção de Outono das aulas e, embora a maior parte dos espectadores fossem professores, também lá estava uma mão-cheia desses belos colegas que constituíam a equipa de pingue-pongue e que eram o orgulho da escola. Estavam a treinar para um campeonato distrital que fazia parte das festividades do Dia Nacional do Primeiro de Outubro, pelo que, em vez de abandonarem a escola durante as férias, tinham ficado para praticar. Sendo filhos de quadros do Partido Comunista que trabalhavam na quinta estatal, possuíam boa compleição e pele clara, tudo graças a uma dieta nutritiva. Para além disso, andavam com roupas de cores garridas, bastando um olhar para se perceber que pertenciam a uma classe diferente da nossa, miúdos pobres. Nós admirávamo-los, mas eles não nos passavam cartão.
Mo Yan, "Mudanças"
Nenhum comentário:
Postar um comentário