Bento renunciara ao mundo aos catorze anos de idade e abandonara a fortuna e os títulos de sua rica família romana. Por volta de 529, fundou um mosteiro no monte Cassino — um morro escarpado de 450 metros de altura, ao lado de um antigo santuário pagão, a meio caminho entre Roma e Nápoles – e estabeleceu para seus frades uma série de regras, nas quais a autoridade de um código de leis substituía a vontade absoluta do superior do mosteiro. Talvez porque buscasse nas Escrituras a visão universal que lhe seria concedida anos depois, ou talvez porque acreditasse, como sir Thomas Browne, que Deus nos oferecia o mundo sob dois aspectos, como natureza e como livro. Bento decretou que a leitura seria uma parte essencial da vida diária do mosteiro. O artigo 38 de sua regra explicitava o procedimento:
Na hora da refeição dos irmãos, sempre haverá leitura; ninguém deverá ousar pegar o livro aleatoriamente e começar a ler dali; mas aquele escolhido para ler durante toda a semana deverá começar seus deveres no domingo. E. entrando em seu ofício depois da Missa e Comunhão, deverá pedir a todos que orem por ele, que Deus o afaste do espírito de exaltação. E este verso deverá ser dito no oratório três vezes por todos, sendo ele o primeiro: “Oh, Senhor, abre meus lábios e que minha boca manifeste Teu louvor”. E assim, tendo recebido a bênção, ele deverá assumir seus deveres de leitor. E deverá haver o maior silêncio à mesa, de tal forma que nenhum sussurro ou voz, exceto a do leitor, seja ouvido. E o que quer que seja necessário no tocante a comida, os irmãos deverão passar uns para os outros, de tal forma que ninguém precise pedir nada.
Tal como nas fábricas cubanas, o livro a ser lido não era escolhido por acaso, mas, diferentemente do que ocorria nas fábricas, onde os títulos eram escolhidos por consenso, no mosteiro a escolha era feita pelas autoridades da comunidade. Para os trabalhadores cubanos, os livros podiam se tornar (muitas vezes isso acontecia) a posse íntima de cada ouvinte, mas, para os discípulos de são Bento, era preciso evitar exaltação, prazer pessoal e orgulho. pois a fruição do texto deveria ser comunitária, não individual. A oração a Deus, pedindo-lhe que abrisse os lábios do leitor, colocava o ato de ler nas mãos do Todo-Poderoso. Para são Bento, o texto – a Palavra de Deus – estava acima do gosto pessoal, senão acima da compreensão. O texto era imutável e o autor (ou Autor), a autoridade definitiva. Por fim, o silêncio à mesa, a falta de resposta da audiência, era necessário não só para garantir a concentração, mas também para impedir qualquer vestígio de comentário particular sobre os livros sagrados.
Mais tarde, nos mosteiros cistercienses, fundados em toda a Europa a partir do começo do século XII, a regra de são Bento foi usada para assegurar um fluxo ordeiro à vida monástica, na qual as angústias e os desejos pessoais se submetiam às necessidades comunais. As violações das regras eram punidas com flagelação e os infratores eram separados da congregação, isolados de seus irmãos. Solidão e privacidade eram consideradas punições; os segredos eram de conhecimento comum as buscas individuais de qualquer tipo, intelectuais ou não, eram firmemente desestimuladas; a disciplina era a recompensa daqueles que viviam bem dentro da comunidade. Na vida cotidiana, os monges cistercienses jamais ficavam sozinhos. Às refeições, seus espíritos eram distraídos dos prazeres da carne e reuniam-se na palavra sagrada através da leitura prescrita por são Bento.
Reunir-se para ouvir alguém ler tornou-se também uma prática necessária e comum no mundo laico da Idade Média. Até a invenção da imprensa, a alfabetização era rara e os livros, propriedade dos ricos, privilégio de um pequeno punhado de leitores. Embora alguns desses senhores afortunados ocasionalmente emprestassem seus livros, eles o faziam para um número limitado de pessoas da própria classe ou família. As pessoas que queriam familiarizar-se com determinado livro ou autor tinham amiúde mais chance de ouvir o texto recitado ou lido em voz alta do que de segurar o precioso volume nas mãos.
Havia diferentes maneiras de ouvir um texto. A partir do século XI, em todos os reinos da Europa joglars itinerantes recitavam ou cantavam versos deles mesmos ou de autoria dos mestres trovadores, armazenados em suas prodigiosas memórias. Esses joglars eram artistas públicos que se apresentavam em feiras e mercados, bem como diante das cortes. Eram, em sua maioria, de origem pobre e em geral negavam a eles a proteção da lei e os sacramentos da Igreja. Os trovadores, como Guilaume da Aquitânia, avô de Eleanora, e Bertran de Born, senhor de Hautefort, descendiam de linhagens nobres e escreviam canções formais em louvor de seus amores inatingíveis. Dos cerca de cem trovadores conhecidos pelo nome que atuaram entre o começo do século XII e o início do século XIII, quando floresceu essa moda, cerca, de vinte eram mulheres. Parece que em geral os joglars eram mais populares que os trovadores, de tal forma que artistas com pretensões intelectuais, como Pedro Pictor, queixavam-se de que “alguns dos altos eclesiásticos preferem ouvir os versos tolos de um jogral às estrofes bem compostas de um poeta latino sério” – querendo referir-se a si mesmo.
Ouvir a leitura de um livro era uma experiência um tanto diferente. O recital dos jograis tinha todas as características óbvias de uma representação teatral, e seu sucesso ou fracasso dependia, em larga medida, da capacidade do intérprete de variar expressões, uma vez que o tema era bastante previsível. Ao mesmo tempo em que dependia também da capacidade de “desempenho” do leitor, a leitura pública punha mais ênfase no texto do que no leitor. A plateia dos recitais observaria um jogral cantar as canções de determinado trovador, como o célebre Sordelo; a plateia de uma leitura pública podia ouvir a anônima História de Renard, a raposa lida por qualquer membro alfabetizado da casa.
Nas cortes, e às vezes também em casas mais humildes, os livros eram lidos em voz alta para familiares e amigos, tanto com finalidade de instrução quanto de entretenimento. As leituras ao jantar não tinham a intenção de distrair das alegrias do paladar; ao contrário, pretendiam realçá-las com diversão criativa, uma prática trazida dos tempos do Império Romano. Plínio, o Jovem, mencionou em uma carta que, quando comia com sua mulher ou com um grupo pequeno de amigos, gostava que lessem em voz alta um livro divertido?
No início do século XIV, a condessa Mahaut de Artois viajava com sua biblioteca em grandes malas de couro, e, à noite, uma dama de companhia lia para ela obras filosóficas ou relatos interessantes sobre terras estrangeiras, como as Viagens de Marco Polo. Pais alfabetizados liam para seus filhos. Em 1399, o notário toscano Ser Lapo Mazzei escreveu a um amigo, o mercador Francesco di Marco Datini, pedindo-lhe emprestado As pequenas flores de são Francisco, a fim de lê-lo em voz alta para os filhos: “Os meninos vão se deliciar nas noites de inverno, pois se trata, como sabes, de leitura muito fácil”. Em Montail ou, no começo do século XIV, Pierre Clergue, o pároco da aldeia, lia em voz alta, em diferentes ocasiões, um assim chamado Livro da fé dos hereges, para os que se sentavam em torno da lareira na casa das pessoas; na aldeia de Ax-les-Thermes, mais ou menos na mesma época, o camponês Guil aume Andorran, descoberto lendo um evangelho herético para sua mãe, foi processado pela Inquisição.
Os Évangiles des quenouilles [Evangelhos das rocas] do século XV mostram quão fluidas podiam ser essas leituras informais. O narrador, um velho letrado, “uma noite, depois da ceia, durante as longas noites de inverno entre o Natal e a Candelária”, visita a casa de uma anciã, onde várias vizinhas reúnem-se amiúde para “fiar e conversar sobre muitas coisas alegres e sem importância”. As mulheres, observando que os homens de seu tempo “escrevem incessantemente pasquins difamatórios e livros infecciosos contra a honra do sexo feminino”, pedem ao narrador que frequente suas reuniões – uma espécie de grupo de leitura avant la lettre – e funcione como escrivão, enquanto as mulheres leem em voz alta certos trechos sobre os sexos, casos de amor, relações entre marido e mulher, superstições e costumes locais, bem como tecem comentários sobre eles de um ponto de vista feminino. “Uma de nós começará a leitura e lerá alguns capítulos para todas as outras presentes”, explica uma das fiandeiras com entusiasmo, “de tal forma a prendê-los e fixá-los permanentemente em nossas memórias.” Durante seis dias as mulheres leem, interrompem, comentam, fazem objeções e explicam, parecendo divertir-se imensamente, a ponto de o narrador achar a descontração delas cansativa, e, embora registrando fielmente suas palavras, julga que seus comentários “não têm rima nem razão”. O narrador, sem dúvida, está acostumado com as dissertações escolásticas mais formais dos homens.
Alberto Manguel, "História da leitura"
Alberto Manguel, "História da leitura"
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