No meio do trajeto houve então um desses diálogos inesquecíveis:
– Mãe, que igreja é essa?
– Nossa Senhora Auxiliadora.
– Por que tem tanta Nossa Senhora? Não era só uma?
– É uma sim, filho, mas ela tem muitos nomes.
– E o Nosso Senhor é são Pedro, né?
– Não, é Jesus, ora. Quem casou com ela foi são José. São Pedro era amigo de Jesus.
A mãe suspirou: não praticar religião em casa dava nisso.
– Ah… e por que o José não é o Nosso Senhor, se era casado com Nossa Senhora?
Os olhos azuis, calmos mas interrogativos, começavam a deixar a mãe inquieta.
– Acho que é porque Jesus e Nossa Senhora são mais importantes, filho.
– Mas o José não era o pai dele?
– Não era de verdade, o pai dele era Deus, José era pai adotivo.
– Ah… Então Jesus não nasceu da sementinha do José?
O silêncio no ônibus começava a se tornar imenso. O menino falava em voz alta e clara, pra ele era tudo natural, assim ensinavam em casa.
A mãe pensou por um momento, por que a gente inventou isso de falar das coisas como se fossem naturais? E, embora se considerasse uma mulher razoavelmente moderna, com uma visão saudável da vida – que estava transmitindo aos filhos num tempo em que o tema não era tão francamente abordado –, naquela hora quase duvidou de que fossem assim tão naturais. Afinal, estavam em público.
O menino a seu lado porém aguardava resposta, respostas.
– Não, filho, Deus fez brotar a sementinha direto em Nossa Senhora, foi um milagre.
– Ué, então não foi como nas pessoas?
Agora o silêncio podia ser cortado com faca.
– Não, filho, não foi.
– Ah…
A mãe se fez de distraída, olhava pela janela, sentindo os outros passageiros aguçando o ouvido, como será que ela vai se sair dessa? O menino pensava concentrado.
– Mãe, como é que antigamente, assim beeeem antigamente, no tempo dos dinossauros por exemplo, as primeiras pessoas sabiam como se fazia pra ter bebê, se não tinham ninguém pra ensinar pra elas?
– Essas coisas a natureza ensina.
– Mas a natureza não é pessoa pra ensinar a gente…
– Quer dizer, quando a gente cresce aprende por si.
No olhar azul transparecia uma certa pena, quem sabe a mãe não era tão inteligente assim. O menino, generoso, resolveu mudar de assunto.
– Mãe, olha, aí estava escrito rua Mozart. Será que ele mora aqui?
– Ele quem, filho?
– O MOZART, mãe, ora. Quem ia ser?
– Não, filho, ele viveu na Europa.
– Ah é? Até achei que era nos Estados Unidos.
– Por que Estados Unidos?
A mãe começava a se divertir, aliviada com aquele diálogo menos perigoso.
– Ué, porque é lá que moram pessoas importantes, o presidente Kennedy e o Cyborg.
– Ah…
Finalmente desembarcaram; ainda segurando o pacote, o menino retomou seu ar sonhador.
– Mãe, como eu tenho um pai bom, né?
Mas aí pensou melhor, espiou de relance com arzinho maroto a mãe que levantava, sorrindo, um dedo em riste, e emendou bem depressa:
– E mãe também, claro…
Lya Luft, "Pensar é transgredir"
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