terça-feira, fevereiro 28

O sonho

Mais e mais me assemelho ao caranguejo: olhos fora do colpo, vou sonhando de lado hesitante entre duas almas: a da água e a da terra.
Curozero Muando 


Eis o que sonhei: que o coveiro Curozero Muando tinha escavado em terras fora do cemitério, longe da vila. Procurara as mais distantes paragens, nas bermas das lagoas, nos outeiros de Zipene, nos vales de Xitulundo. Em todos os lugares sucedia o mesmo: não era possível penetrar no solo. Tentou-se mesmo até. na secreta sombra de Ximhambanine, a sagrada floresta dos anciãos. O coveiro desabara, joelhos na areia: os deuses nos acudissem e amolecessem o chão. Mas nem reza nem lamento resultaram. Invariavelmente, a pá chocava com um duro manto de pedra. Era como se, em todo o lado, a terra inteira tivesse fechado.
Chegaram amigos da cidade e disseram-me que o mesmo fenômeno estava ocorrendo noutros lugares. Em todo o país, a terra negava abrir o seu ventre aos humanos desígnios. Enviei mensagem para o exterior. E o mesmo se passava também por lá. Em todos os continentes o chão endurecera, intransponível. O assunto tornara-se uma catástrofe de proporções mundiais. Não era apenas a impossibilidade de enterrar os cadáveres. A agricultura paralisara. Os trabalhos de construção, as minas, as dragagens nos portos, tudo estava parado.

Dirigentes internacionais procuravam apressadamente explicações, cientistas de reputação pesquisavam motivos, multiplicavam-se comissões, viagens e expedições. Ninguém fazia ideia que a raiz de tão grave desequilíbrio se localizava, afinal, na nossa pequena Ilha. Ninguém sabia que tudo começara na pessoa do Avô Mariano.

No sonho, eu regressava ao cemitério. Não encontrava o coveiro Curozero. Mas lá estava a sua irmã, Nyembeti, mais convidativa que nunca, trajando a movediça capulana que mostrava mais que cobria.


Instigando-me com gestos e assobios a moça me conduziu para um local que só ela conhecia, no sopé de um monte. Escolheu entre fragas e cavernas e se meteu por um esconso recanto. Ali onde a luz mal chegava, ela se deitou na terra escura e me chamou. Era uma gruta sombria e o cheiro me era familiar. Hesitei antes de me estender no chão. Me fazia temor o não ver onde me pendia.

– Deite-se em cima de mim! Afinal, Nyembeti falava? E falava português? Meu corpo cobriu o dela, os braços me suportaram para não pesar sobre ela. Mas ela me puxou os pulsos e levou as minhas mãos a que lhe cobrissem os seios. E depois visitassem o seu corpo, seus húmidos segredos. Ali no escuro fizemos amor. Nossos gemidos se amplificavam, ecoando nos redondos da caverna. No final, uma ave se soltou do tecto, esbranquiçando as penumbras.

Só quando me recompunha, arfante, é que reparei: aquele cheiro da gruta era o mesmo do quarto de arrumos. E o gosto daquela mulher, a voz, o perfume, tudo era o mesmo. Podia Nyembeti ter estado naquele dia em Nyumba-Kaya? Podia ser ela a incógnita amante que antes me assaltara? – Se admira de eu falar português? Me espantava ela falar. Mas a moça explicou: queria escapar aos vários Ultímios que lhe apareciam, com ares citadinos. Se fazia assim, tonta e indígena, para os afastar de intentos.

– Com você posso falar qualquer língua. E mesmo em nenhuma língua.
Beijámo-nos. De novo, me veio a sensação de regressar ao escuro do quarto de arrumos. O braço dela me afasta, com doçura mas sem vacilar.

– Agora, venha comigo. Eu trouxe-lhe aqui para lhe mostrar.

As mãos, em concha, escavaram a terra. E o assombro me catapultou o peito. O solo ali era fofo, minhocável, esfarelento. Nyembeti descobrira onde se podia cavar a sepultura do Avô.

– Como é que você encontrou este lugar? Mas ela negou. Os lugares não se encontram, constroem-se. A diferença daquele chão não estava na geografia. Apontou para nós dois e embrulhou as mãos para, em seguida, as levar ao coração. Ela queria dizer que a terra ficou assim porque nela nos amáramos? Seria o amor que reparara a terra? Fazer do chão um leito nupcial, seria isso que amoleceria a terra e nos punha de bem com a nossa mais antiga morada? Talvez. Talvez fosse tudo tão simples como o lençol do velho Mariano, esse onde ele agora repousa. É esse lençol, quem sabe, com todos os cheiros de antigos amores, é esse lençol que vai prendendo o velho à vida.

Nyembeti me olhou, curiosa de me ver ausente. Sorriu e com um gesto sugeriu que eu regressasse à vila. Ela ficaria na gruta. Ainda me dirigiu um pedido, à despedida: – Sei que você irá para a cidade. Mas quando voltar deve trazer-me uma prenda de lembrança.

Estranho o que ela queria que eu trouxesse: saliva de cobra, cuspo de lagarto. Ou antes, caso eu pudesse: seivas de arbusto maligno, gosma de cacto. Qualquer coisa desde que fosse da ordem dos venenos, das mortais peçonhas que certos bichos e plantas confeccionam em seus interiores infernos. Isso eu sonhei, naquela noite quente.

Manhã cedo me ergo e vou à deriva. Preciso separar-me das visões do sonho anterior. Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreara os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas, esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra.

Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão.

As cabras me atiram para lembranças antigas. E o rosto de Mariavilhosa, minha doce mãe, vai neblinando o meu olhar. Porque naquelas pastagens muitas vezes aquele rosto me visitara proéurando refúgio em minha pequena alma. Minha mãe tinha engravidado, antes de mim. Mas alguma coisa não correra bem. Diz-se que abortara, mas a história se distorcia no tempo. O médico, sempre o mesmo Mascarenha, tinha assegurado que Dona Mariavilhosa jamais poderia voltar a conceber. A medicina se engana e eu sou prova viva disso. Depois de mim, a mãe ainda voltou a engravidar. Mas a velha profecia desta vez se confirmou. Aquele meu irmãozito, dentro do ventre dela, não se abraçara à vida. Para Mariavilhosa aquilo foi motivo de loucura. Podia ser estranho, mas o parto – chamemos parto àquele acto vazio – se deu na noite da Independência. Naquela noite, enquanto a vila celebrava o deflagrar de todo o futuro, minha mãe morria de um passado: o corpo frio daquele que seria o seu último filho. Meu pai me levou para dentro de casa enquanto Mariavilhosa, com o recém-falecido ao colo, se arrastou pelo pátio. Ainda a vimos erguer o corpo do bebé para o apresentar à lua nova. Como se faz com os meninos recém-nascidos. Meu pai lhe entregou um pedaço de lenha ardendo. E ela atirou o tição para a lua enquanto gritava: – Leva-o, lua, leva o teu marido! Aquele fogo riscando o escuro me ficou gravado como se fosse um astro subindo alto para depois tombar em mil cadências de luzes. Anos mais tarde, já minha mãe falecida, eu olhava a lua enquanto pastoreava no escuro e via Mariavilhosa com o menino em suas costas. E escutava o seu pranto aflito, aferroado pela fome. Então eu acorria à fogueira e apagava o lume. Matando o fogo eu me expunha aos bichos e ao frio. Mas isso não tinha importância. Eram as trevas que eu necessitava. Só no escuro minha mãe encontrava conforto e guarida. Nesse recanto ela calava meu falecido irmão, esse que, por nunca ter vivido, não haveria nunca de morrer.
Mia Couto, "Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra"

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