Bem próximo da aposentadoria. Poucos meses faltavam. Trinta e cinco anos de exercício na nobre função de prestar justiça aos que são ofendidos por atos ilegítimos. Por ele mesmo continuava na função até a última gota de vida, aposentadoria nem falar, só se não tivesse jeito. Acostumado a julgar demandas como um fato natural. De todos os tipos. Sentenças memoráveis, dignas da mulher com a venda nos olhos, a balança com o peso ideal de cada lado, a espada sustentando a luta pelo direito.
Neutro acima de tudo, dando a cada pessoa o que é seu, reparando os danos, preservando a vida individual, do homem na história como ser social, cumpridor de seu destino gregário.
Sem a prestação da justiça, não haveria a paz, sobrevivência da espécie humana, o caos instalado pela lei do mais forte. A esperança banida pelos instintos impiedosos do insano animal sem trégua.
A sentença justa, fundamentada nas provas dos autos. Documentais, periciais, testemunhais. O que estava fora dos autos não tinha valia para formar convicções. Não adiantava dizer, senhor juiz estou inocente, juro pelo amor a Deus, pela alma de minha mãe, por todos os santos, amém. Rogasse o réu, derramasse lágrimas: Acredite, eu vos peço, de joelho, absolva-me, quero criar meus filhos, não tenho marido, sou uma pobre viúva, vivo de cozinhar para os outros, não quero morrer na prisão. Não adiantava a cena convulsiva, o direito não se media pela condição da pessoa, tamanho do dano, todos eram iguais perante a lei. A razão sempre esteve acima da emoção, ajustada nos artigos, proclamada nos considerados, a sentença reta e certa sempre no final da lide.
Determinava categórico, retirem essa mulher do recinto, procedimento inadequado, precisamos ouvir as testemunhas de acusação.
Uma máscara sólida o rosto, a pele enrugada, não se via um sorriso, os olhos absorvidos pelas cavidades grandes das órbitas, sobrancelhas grossas, unidas na curva das pontas, como se fossem uma, os cabelos brancos, bem penteados, alisados, lustrados com brilhantina, a camada espessa não esvoaçava ao vento.
Aposentado, andava equilibrado, passos meticulosos, concentrado no rosto, duro por onde passava. Passeio matinal pelo jardim. Parecia fora do mundo. Não escutava o gorjeio dos pássaros. Não se encantava com os raios de sol no tronco das árvores inventando aranhas. Foi quando ouviu os gritos da menina, estava sendo estuprada por dois homens grandes e fortes. A cena desalmada não lhe perturbava. A polícia chegou rápida, a área isolada pelo cinturão dos guardas e viaturas. O sargento perguntou-lhe se tinha visto a cena brutal que vitimou a menina. Disse que viu tudo, mas não tinha palavras para descrever o que presenciara. Ainda não se acostumara com o mundo visto aqui de fora, seus movimentos diversos, inesperados, na dura lei da vida suas abomináveis ciladas.
Destituído de emoção, discípulo da razão que julgava os fatos com a letra fria da lei, desaprendera a ter a emoção que acompanha a espécie humana desde tempos imemoriais.
Sem essa condição, que dá ao homem o que lhe pertenceu sempre, razão e emoção, escutara os gritos lancinantes da menina, sem sentir a crueldade da cena: a menina morta com a força dos estupradores na sanha inconcebível, o que indubitavelmente deixou todos perplexos.
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