Velho em Londres vendendo livros na rua |
“Entre as diversas moléstias significativas da minha
velhice, o amor aos livros antigos – a mais dispendiosa – leva-me o dinheiro
que me sobra da botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes
orgias de pílulas e tisanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me
ilustro com os arcaísmos. Arruíno o estômago e enferrujo o cérebro em uma
caturrice acadêmica.
Constou-me aqui há dias que a sra. Joaquina de Villalva
tinha um gigo de livros velhos entre duas pipas na adega, e que as pipas, em
vez de malhaes de pau assentavam sobre missais. O meu informador denomina
missais todos os livros grandes; aos pequenos chama cartilhas. Mandei perguntar
à sra Joaquina se dava licença que eu visse os livros. Não só mos deixou ver;
mas até mos deu todos – que escolhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço
de bibliômano. Eles, gordurosos, úmidos, empoeirados, pareciam-me sedutores
como ao leitor delicadamente sensual se lhe figura a face da mulher querida,
oleosa de cold-cream, pulverizada de bismuto.
Havia sermonários latinos, um Marco Aurélio, três retóricas,
muitas teologias morais, um Euclides, comentários de versões literais de Tito
Lívio e Virgílio. Deixei tudo na benemérita podridão, tirante uma versão
castelhana do mantuano por Diego Lopez e um muito raro “Entendimento literal e
constrviçam portuguesa de todas as obras de Horacio, por industria de Francisco
da Costa”, impresso em 1639.
Disse-me a dadivosa viúva de Vilhalva que os livros estavam
na adega, havia mais de 30 anos.
( ...)
Saí com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e
1817, que a sra. Joaquina, com riso cético, indisciplinado, me disse serem do
tempo dos Affonsinhos.
(...) Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as páginas
dos dois livros, preparado para o dissabor de encontrá-los mutilados,
defeituosos, com folhas de menos, comidas pelas ratazanas colaboradoras roazes
do galicismo na ruína da boa linguagem quinhentista."
(Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco (1825/1890) na
introdução de “A Brasileira de Prazins”, de 1882)
Nenhum comentário:
Postar um comentário