terça-feira, junho 3

O bonde, o sonho, os livros


O uso já tornou o velho banquinho de cedro tão confortável quanto uma poltrona. São horas sentado nele, vendo a mercadoria para colocar preço. Pilhas e pilhas de livros. Quando hoje chegou uma remessa de livros, a maioria sobre o Rio antigo, até esqueci o tempo. A madeira se acomodou ao corpo ou foi o corpo que se moldou à madeira? Talvez tenha se tornado um assento de tílburi ou mesmo um banco de bonde, que só existe hoje para os privilegiados moradores de Santa Teresa. Um tipo de transporte paleontológico a rodar ainda muito nas páginas dos livros. E como roda. Pode-se até ouvir o trotar dos cavalos nos tempos em que era puxado por animais.
O bom do livro é mesmo poder passar por todas as épocas mesmo confortavelmente instalado num banquinho. E aí me perdi em saudade do tempo que os escritores recuperaram para sempre. Para Augusto Frederico Schmidt, o bonde “abria clareiras, pausas, sítios solares”. Num trecho de “O Galo Branco”, o poeta “revê o passageiro, perdido nas suas lembranças, o caminho nos trilhos”. Schmidt desenhou o bonde de sua época, já elétrico, mas destinado à extinção: “O bond era um lugar de leitura e de sonho. Ainda mais de sonho do que de leitura”.
Se era pouso do sonho, o bonde fazia decolar a leitura. As rodas de ferro nos trilhos soavam como num trem; o sacolejar era de barco; e tinha um jeitão de gaiola do rio Amazonas. A velocidade era perfeita como num tapete de Aladim, que levava o passageiro leitor para qualquer lugar e tempo. Em “São Paulo naquele tempo 1895-1915” , todo ilustrado pelo autor, Jorge Americano descreveu aqueles veículos verdes com lâmpadas coloridas  para as pessoas distinguirem as linhas à noite. Mil bondes estão nas páginas de gente do Nordeste e do Sul. Seria uma boa viagem percorrer tantos anos e trilhos. Daria livro.   
Bondes de todos os tempos que levavam ao poeta Schmidt a explicação de seu hábito de despertar “nas portas da aurora”. Grande Schmidt que apenas com o barulho do elétrico viajava mais longe para a infância com os bondes puxados a burro na avenida Nossa Senhora de Copacabana, quando viajou vestido à marinheiro com um gorro azul-marinho entre homens que pareciam “respeitáveis e mesmo atemorizantes; quase todos usavam bigodes”.  Hoje o bonde virou apenas uma foto nas páginas e atemoriza quando um grupo de pivetes resolve fazer um “bonde” que arreste carteiras e bolsas. Mas nos livros o bonde ainda é sinônimo de paz e leitura.
(de O Velho Livreiro)     

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