terça-feira, abril 7

O negro Jacinto

Debaixo dum carretão velho de cabeçalho quebrado e rodado sem chapa, deitado, a cabeça descansando sobre as mãos em cruz, o Coleira revivia antigas lembranças. O olhar vesgo e gris, solto à toa no campo raso, era fugitivo, ambíguo, disperso como numa amarga meditação. Nunca andara assim, debalde, espichado no chão, vagabundo e sonolento. Nunca. Só agora que estava velho e caduco, que não prestava para mais nada, que vivia essa vida inútil de tédio e preguiça. Mas não gostava disso. Sempre preferiu a vida ágil e gaudéria que levava noutros tempos, quando era novo e tinha força. Todos o animavam então. E ele bem merecia, pois não havia campereada que não ajudasse. Ia em qualquer volteada, corresse risco ou não, alegre, cabeça erguida, faro ativo, e o arco torcido para cima. Quantas vezes escapou por um triz de ficar enfiado nas guampas dos touros.

E agora tudo mudado. Decrépito, as juntas emperradas, de há muito sem aquela atitude arrogante de antigamente, judiado e debochado por todos. E que desconsolada sua melancolia de cachorro decadente, nas manhãs barulhentas de rodeio e sol, ao ver a cachorrada sair em grupo, embolada num novelo turbulento, pulando no estribo do patrão e ganindo excitada de alegria! Farejava o vento agreste, entesava as pernas magras, e arremetia leve como se mudasse instantaneamente noutro, no que fora. E a poucos passos ficava exausto e vencido, parado, numa tremura. A custo sentava sobre as pernas traseiras, erguia bem alto a cabeça, e uivava longamente, angustiando com a sua lástima a ventura da manhã.

O galpão ficou só. Dia frio. E feias as campanhas, pardas de garoa. O choro do vento nos oitões e a zoada do arvoredo despilchado de inverno enchiam o vazio do sol e da vida. O Coleira se arrastou até a porta. Abriu os olhos cansados. Ninguém! Caminhou trôpego e ansioso para a beira do fogão, apressado por matar aquela saudade. Arrodeou os tições que ardiam quietos e se enroscou na cinza morna. Já lhe era quase estranho aquele calor. Também, há quanto tempo! Ninguém o queria mais ali, atulhando caminho, traste sem préstimo!

Lá fora caía neve. Mas na beira do fogão estava tão quente! Feliz, esquecido que tinha penado, foi adormecendo devagarinho. E sonhou. Foi um sonho cheio de aventuras e perigos do tempo desperdiçado de cachorro novo. Sonhou com as caçadas das noites de verão. Quanto bicho tirou da toca! E quantos outros correu campo fora até pegar! E logo o sonho mudou para um dia de solaço. Andava campereando com a peonada.

Numa trepada de coxilha, um lagarto verde e enorme, escarrapachado sobre a laje. Negaceou escondido entre os miolos, como pisando em espinhos, alevianado que andava. Voou uma perdiz de dentro de uma moita, riscado linha direta no ar. Ele seguiu com raiva o voo trepidante que podia espantar a caça. Mas logo o rufo silenciou. A perdiz se degolou na corda mais de cima do aramado. O gorgon ficou vibrando um assobio. O lagarto inchou de brabo. E ele pulou ágil na presa. Mas levou tamanho lepte nas costelas, que saiu quietinho, fino, para trás. Refeita a coragem, carregou com mais gana agora. A barriga lisa do lagarto amarelou para cima, e o novo guascaço doeu mais ainda. Encolheu-se e ganiu de dor.

Acordou. Uma gargalhada debochada e gaiata estrondou no galpão. Na frente dele, o negro Jacinto, beiçudo, olhos rasgados, chiripá de lona, com um relho trançado e grosso dependurado na mão monstruosa de tamanho, e a dentuça branqueando na bocarra escancarada.
Cyro Martins (1908 - 1995) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário