Uma das primeiras edições brasileiras do clássico “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, publicada pelo Círculo do Livro, em 1958, tem um prefácio assinado por Otto Maria Carpeaux que é um mimo — e que, por si só, já faz valer a busca da velha edição nos sebos. No texto, o notável crítico literário convence qualquer um a ler o tijolaço das aventuras daqueles dois malucos, Dom Quixote e Sancho Pança. Com argumentos cheios de paixão, cita a originalidade, a composição, o humor, os temas, o alcance, a verve, a perfeita “harmonia do ridículo e do melancólico”.
Lá pela espinha do texto, Carpeaux lembra que muitas daquelas características quixotescas, no entanto, já estavam anunciadas nas “Novelas exemplares”, um conjunto de contos picarescos, de enredos e estilos variados, que Cervantes escreveu antes de finalizar “Dom Quixote”. É taxativo ao defender a importância da obra: “As ‘Novelas exemplares’ são a outra grande obra de Cervantes, digna de figurar ao lado de ‘Dom Quixote’”.
Mas o sucesso do “romance dos romances” acabou ofuscando a obra, até hoje pouco conhecida no Brasil. Enquanto o Quixote tem mais de 70 edições no país (a primeira, com ilustrações de Tarsila do Amaral, data de 1942; a última, da Penguin, é de 2012), as “Novelas exemplares” só tiveram uma. Um pequeno volume foi editado em 1970 pela Abril Cultural, com apenas nove das 12 novelas — ainda assim, em ordem inversa à que Cervantes indicara para a leitura, e com tradução do final do século XIX, em português arcaico. A primeira edição completa da obra chega ao Brasil este mês, pela Cosac Naify, com tradução do original, ensaios críticos e ilustrações da artista visual Vânia Mignone.
— É impressionante como Cervantes continua importante e agradável 400 anos depois. São textos divertidos, graciosos, fluentes, sensíveis, em que ele vai longe, mas sem ser solene. Dessas doze novelas, cinco, pelo menos, têm o seu humor clássico, o leitor logo vai identificar — nota o gaúcho Ernani Ssó, tradutor do volume, lembrando que uma das raras alusões à obra na literatura brasileira foi feita pelo escritor Dalton Trevisan, no irônico título de seu livro “Novelas nada exemplares”, ganhador do Prêmio Jabuti de 1959.
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Trecho
Parece que os ciganos e as ciganas vieram ao mundo apenas para ser ladrões: nascem de pais ladrões, criam-se com ladrões, estudam para ladrões e, enfim, acabam ladrões de cima a baixo, de dia e de noite, e a vontade de furtar e o próprio furto são como que traços inseparáveis neles, que apenas a morte elimina. Assim, uma desta nação, cigana velha, que podia ser aposentada na ciência de Caco, criou uma moça como neta sua, a quem chamou de Preciosa e a quem instruiu em todas as suas ciganices, formas de logro e maneiras de furtar. A tal Preciosa se tornou a melhor dançarina que se viu entre os ciganos, e a mais bela e sagaz que possa se encontrar, não entre os ciganos, mas entre quantas belas e sagazes a fama poderia proclamar. Nem os sóis, nem os ares, nem todas as inclemências a que os ciganos estão sujeitos mais que outros povos puderam macular seu rosto nem curtir suas mãos; e, mais importante, o meio tosco em que foi criada não revelava nela senão ser nascida com maiores atributos que os de cigana, porque era cortês ao extremo e bem-pensante. Apesar disso, era um tanto desembaraçada, mas não de modo que revelasse algum tipo de falta de pudor. Na verdade, por ser arguta, era tão pura que em sua presença nenhuma cigana, nem velha nem jovem, ousava cantar canções lascivas nem dizer grosserias. Enfim a avó descobriu o tesouro que tinha na neta e, por isso, a águia velha resolveu botar sua aguiazinha a voar e ensiná-la a viver com suas próprias garras. Preciosa saiu rica de vilancicos, coplas, seguidilhas e sarabandas, e de outros versos, especialmente de romances, que cantava com especial galhardia. Porque a velhaca de sua avó percebeu que tais canções e habilidades, mais os poucos anos e a grande formosura da neta, haviam de ser felicíssimos atrativos e incentivos para aumentar seu cabedal. Assim, procurou-as por todos os meios que pôde, e não faltaram poetas que as dessem, porque também há poetas que se dão bem com ciganos, e vendem a eles suas obras, como existem poetas para cegos, a quem fingem milagres e vão pela parte do lucro. Há de tudo no mundo, e a fome talvez lance os talentos em coisas que não estão no mapa.
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