M. atende o telefone. No escuro tacteia entre os objetos da mesinha de cabeceira, enquanto se interroga: para que raio preciso dos óculos para atender uma chamada? Escuta a voz de um homem, rouca e arrastada, que diz:
– Precisamos de falar com o seu filho.
– Meu filho? Eu não tenho filho... ou, por outra, o meu filho ainda está na barriga da mãe.
– Nasce quando?
– Nasce daqui a... mas, desculpe, quem é o senhor?
– Precisamos de falar com o seu filho, agora. Antes de ele nascer.
– Vou desligar.
– Não está a pensar nele.
– Em quem?
– No seu filho. Este telefonema é para ajudar essa criança.
M. desliga. Em casa, a mulher reage com violência quando, na manhã seguinte, ele lhe dá conta do sucedido.
– Deve ser um louco! – declara a esposa. – E tu deste conversa.
– Desliguei não desliguei?
Nessa noite, não conseguiu adormecer. A voz do intruso, rouca e arrastada, continuava ecoando na cabeça, roubando-lhe o sono. E o intruso não falava na primeira pessoa. Dizia: precisamos de falar...
Na manhã seguinte, no gabinete, nova chamada. De novo, no ecrã do celular, a indicação “desconhecido”. Pensou em não atender. Mas cedeu. Atendeu. Um longo silêncio. E ele, ansioso:
– Alô? alô?
Depois, a mesma voz se fez escutar.
– Já organizou as coisas?
– Vou queixar à polícia.
– Entendo, eu faria o mesmo. Trata-se, porém, de um caso de extrema necessidade. Falamos com o seu filho uma vez e não o incomodamos mais.
M. desliga. Nasce nele uma suspeita. Angustiado, apressa o regresso a casa.
– Há algo que me queres dizer? – pergunta à mulher assim que abre a porta. Discutem. O homem desconfia que o intruso detém um segredo sobre a verdadeira paternidade do vindouro. A mulher grita: como podes duvidar de mim?
No divã da sala, para onde a mulher o exilou, custa-lhe uma vez mais adormecer. O insistente autor das chamadas seria realmente proprietário de comprometedores segredos? Tem vontade de lhe ligar. Mas está condenado a ter de esperar. Esse ninguém, essa voz sem nome, continua a mandar nele.
Levanta-se cedo. O tabuleiro com o café conduzido ao quarto da esposa é um modo de pedir desculpa. Ajoelhado na cabeceira, beija-lhe as mãos e promete nunca mais voltar ao assunto.
Dias depois, o celular toca. Espreita, não reconhece o número. Perde o interesse em atender. Mas a insistência do toque acaba por vencer.
– Sou eu.
– Nunca mais ligou...
– Não imagina o estado em que me encontro.
– O que se passa?
– Não é possível adiar mais, é urgente falar com ele.
– Com o meu filho?
– Faço-o com discrição, estive a pensar numa maneira de o fazer. A sua mulher não vai aperceber-se de nada...
No regresso a casa, M. apressa o passo. Vem-lhe à ideia o quanto ele se está tornando cúmplice daquela voz arrastada e rouca. Abre a porta com a leveza de quem arrasta o peso da culpa. Junta-se à esposa que, na sala, assiste a um programa de televisão. Beija-lhe o rosto primeiro e, depois, o redondo ventre lunar. Com o duplo cansaço dos nove meses, a esposa não tarda a adormecer. O marido espera que o sono se torne profundo e faz uma chamada em voz ciciada:
– Pronto, ela já está a dormir.
– Ótimo. Faça como eu lhe disse.
– Agora?
– Não me disse que ela está dormir?
Com mil cuidados, M. encosta o telefone à barriga da esposa. Mas logo emenda o gesto e pergunta, em sussurro:
– Ligo o altifalante?
– Não, queremos falar com a criança a sós.
– Já está, já pode falar.
E volta a encostar o telefone ao ventre da esposa. Silêncio. E depois do silêncio, nada. Volta a levar o telefone para junto do seu rosto.
– Já falou? – pergunta.
– Já o escutamos.
– Escutaram?
– Seu filho já nos entregou a mensagem. Agradeço a sua gentileza. Não o voltamos a incomodar.
– Desculpe, mas que mensagem?
– Não lhe posso dizer. Os nossos serviços tomaram nota.
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