sábado, agosto 31
O néscio, de vez em quando
Alireza Darvish |
De mim, a quem desconheço totalmente, falo de cadeira.
Um editor me pediu para escrever uma autobiografia, mas seria um livro de memória. Disse-lhe que não, alegando que era moço ainda para me tornar memorialista e velho demais para começar a escrever. Sim, amigos, nenhum de nós, cronistas, começou ainda a escrever. Escrevemos todos os dias, às vezes melhor todavia, mais das vezes cansadíssimos da obrigação inclemente de escrever todos os dias.
Hoje, por exemplo, estou escrevendo desde ontem, para merecer um fim de semana longe daqui e mais perto de mim mesmo. Uma rede, um cachimbo (minto, um cigarro), um ou outro mosquito, a mulher e, se esta deixar, uma cervejinha gelada. No braço de maré, em frente ao terraço, pula, de vez em quando, um peixe grande. E,quando a noite é mais clara, a gente o vê, como uma coisa de prata, brilhando no ar. Eu digo o de sempre, com o espanto mental que trouxe do Recife:<
– Você viu o peixe?
E completo, fazendo o tamanho com as mãos:
– Era dest'amanho.
A mulher, na rede ao lado, diz que viu, mas com um certo desgosto pela minha surpresa sem razão. Minha incabível perplexidade face a um acontecimento tão comum. Então, eu me recomponho, puxo uma conversa, possivelmente interessante, até que ela se esqueça da minha atitude cretina, porque mais um peixe pulou, simplesmente. Fica tudo em paz e conversamos sobre os poetas melhores, desde Camões. Os da língua portuguesa, apenas, porque daí a pouco, salta outro peixe e eu não me contenho:
– Você viu o peixe? dest'amanho.
O marido tem certos deveres de parvoíce, de cretinice até, para com sua esposa. Porque só existe maldade, onde há, ao menos, um toque de besteira. Já a visita, não. O homem, mesmo sendo marido, quando está em visita tem obrigação de ser brilhante.
Bebo mais cerveja, gozo a delícia de mais um mosquito nas imediações do tornozelo (os mosquitos preferem as partes pálidas do ser humano), converso sobre Jacqueline Kennedy e, quando começo a atingir o nível intelectual da minha amada, eis que pula outro peixe... Assim, não é possível. Um homem assim não devia ter saído pelo mundo, à procura de Deus e Amor. Poderia ter ficado em sua casinha do Recife, dizendo suas besteiras, mas em casa de sua mãe. Mãe e irmãos são parentes. Mas mulher só vira parente e só tem obrigação de aguentar os espantos cretiníssimos do marido após as bodas de prata. Reconheço que tenho longos momentos de lucidez, mas sempre interrompidos por exclamações da maior besteira.
...Desculpe, leitor, eu ter falado, mais uma vez, de mim. É que escrevo muito direitinho quando descrevo o néscio intermitente que existe dentro deste homem. Um pobre homem do Recife.
N. do C. – Dedico esta crônica a Dorival Caymmi que, na realidade, nunca viu um peixe.
Antônio Maria
sexta-feira, agosto 30
Negra Sabina
Cerâmica do piso brilhando. Móveis lustrados. Vidros sem um fio de poeira. Comida deliciosa, pratos variados, cheiro provocante, tempero divino.
Incomum disposição nos trabalhos de casa.
Outra não existia no mundo. A família elogiava. Nem ligava.
Fechava a porta da cozinha. Não queria ver marido e esposa duelando na sala. Nem pai com o filho. Batalhas acirradas.
Nunca quis ter seu homem. Pra que ter filho, pobre e preto? Carregar mais peso neste mundo? Bastava-se na sua cruz pessoal. Acostumada com o destino. Doçura nunca lhe pertenceu neste mundo cheio de amarguras.
Tempão trabalhava para aquela gente fina. De cabelo louro, olho azul, pele branca como vela.
Um dia, a pergunta constante, ninguém sabia explicar o sumiço da foto. Quem tinha feito aquilo? A moldura vazia na parede. Sem o retrato do neto da patroa. Procurou-se por todos os cantos. A patroa abriu, fechou gavetas.
Coisa estranha, intrigante.
Negra Sabina era empregada de confiança. Nunca tinha sumido nada no apartamento.
Então como foi acontecer? “Se quiser, vá até meu barraco. É perto daqui. Procure lá”. Resposta da patroa, nervosa: “O que é isso? Nunca falamos que foi você.”
Para que ia querer o retrato da criança loura, cabelos finos, olhos azuis como o mar?
Colocara o retrato do menininho no seio.
À noite no barraco. Diante da foto protegida por mãos generosas. Cantava baixinho:
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Vem pegar nenê
Que tem medo
De careta.
Igual como a tataravô fazia com o neném da sinhazinha. Na casa-grande do engenho.
Cyro de Mattos
Incomum disposição nos trabalhos de casa.
Outra não existia no mundo. A família elogiava. Nem ligava.
Fechava a porta da cozinha. Não queria ver marido e esposa duelando na sala. Nem pai com o filho. Batalhas acirradas.
Nunca quis ter seu homem. Pra que ter filho, pobre e preto? Carregar mais peso neste mundo? Bastava-se na sua cruz pessoal. Acostumada com o destino. Doçura nunca lhe pertenceu neste mundo cheio de amarguras.
Tempão trabalhava para aquela gente fina. De cabelo louro, olho azul, pele branca como vela.
Um dia, a pergunta constante, ninguém sabia explicar o sumiço da foto. Quem tinha feito aquilo? A moldura vazia na parede. Sem o retrato do neto da patroa. Procurou-se por todos os cantos. A patroa abriu, fechou gavetas.
Coisa estranha, intrigante.
Negra Sabina era empregada de confiança. Nunca tinha sumido nada no apartamento.
Então como foi acontecer? “Se quiser, vá até meu barraco. É perto daqui. Procure lá”. Resposta da patroa, nervosa: “O que é isso? Nunca falamos que foi você.”
Para que ia querer o retrato da criança loura, cabelos finos, olhos azuis como o mar?
Colocara o retrato do menininho no seio.
À noite no barraco. Diante da foto protegida por mãos generosas. Cantava baixinho:
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Vem pegar nenê
Que tem medo
De careta.
Igual como a tataravô fazia com o neném da sinhazinha. Na casa-grande do engenho.
Cyro de Mattos
quinta-feira, agosto 29
Há muito mais nesse amor
A leitura é muito mais do que uma simples relação dos olhos com os livros... A leitura é um espaço, um lugar predileto, uma luz escolhida, um ritual em que importa até a época do anoLuis García Montero
O fantasma de Rita Hayworth
O velho afagou o cavanhaque, os olhos sonhadores perdidos num tempo remoto, e perguntou-me se eu tinha ideia de quem fora Rita Hayworth. O nome acordou em mim antigas imagens a preto-e-branco, com muito grão, de uma mulher belíssima sendo esbofeteada.
– A atriz?
– Margarita Carmen Cansino. O pai era espanhol, sabia?
– A atriz?
– Margarita Carmen Cansino. O pai era espanhol, sabia?
Susa Monteiro |
Eu não sabia. Não sabia quase nada sobre Rita Hayworth. Também não compreendia por que motivo o velho se lembrara da estrela norte-americana. Eram cinco da tarde e chovia. Minutos antes, passeava de bicicleta quando vi o céu escurecer. Do outro lado da estrada, meio escondidas atrás de uma desordenada mancha de eucaliptos, erguiam-se as altas ruínas, ainda elegantes, embora muito desgastadas e ofendidas, do Grande Hotel do Lumbo. Pedalei até lá na esperança de encontrar abrigo e, ao mesmo tempo, curioso para ver de perto um edifício (ou o que resta dele) que há vários anos me fascina. Deixei a bicicleta encostada ao que numa outra era deve ter sido uma magnífica escadaria, e galguei os degraus precários até à larga varanda, atulhada de lixo.
Foi então que o vi. Estava sentado numa cadeira de verga, vestido de branco, sapatos, calças, camisa e casaco, com uma bengala de punho de marfim atravessada no regaço. Pareceu-me, todo ele, uma assombração benigna. Ofereceu-me um sorriso largo, de dentes muito brancos, que iluminou por instantes a penumbra húmida, como um rápido golpe de sol:
– Bem-vindo ao Grande Hotel do Lumbo! – Estendeu-me a mão. – Abdullah Ibrahimo, um sonhador distópico, ao seu serviço.
Contou-me que antes de ser transformado em hotel o edifício pertencera à família dele. Um dos trisavôs veio do Iémen para a Ilha de Moçambique, no início do século XIX, enriquecendo com a compra e venda de escravos e marfim. Algumas daquelas paredes haviam sido erguidas por esse avô antigo, numa época em que o governador-geral de Moçambique era o negreiro mais famoso do império português, e as escunas e os pangaios se sucediam, nos principais portos da colónia, carregando escravos.
O pai, à beira da bancarrota, fora forçado a vender o edifício, logo transformado em hotel. Em 1950, Abdullah Ibrahimo era um garoto (ainda) rico, que ocupava o tempo livre lutando boxe e vendo filmes, uns atrás dos outros, no único cinema que então funcionava na Ilha de Moçambique: o Cine Imperial.
Na noite em que completou 18 anos, Abdullah foi com um grupo de amigos assistir à estreia d’A Dama de Xangai, de Orson Welles, em que este contracena com Rita Hayworth – poucos meses antes de se separar dela.
Depois do filme, os rapazes decidiram jantar no Grande Hotel do Lumbo. Sentados a uma larga mesa, saboreando lagosta grelhada e bebendo cerveja, discutiram longamente a tragédia de Michael O’Hara, um marinheiro um pouco ingénuo, interpretado por Orson Welles, que, ao apaixonar-se por uma loira misteriosa, se vê envolvido numa acusação de homicídio. Como tinha um quarto cativo no hotel, Abdullah despediu-se dos amigos e foi dormir. Acordou a meio de um pesadelo no qual Elsa Bannister, a loira misteriosa, o tentava afogar num mar escuro, infestado de tubarões, batendo-lhe repetidamente com um sapato na cabeça. Deitara-se vestido. Ao sair para a varanda, em busca de uma brisa fresca que o ressuscitasse, a roupa amarfanhada e o cabelo revolto, deu com uma lua imensa erguendo-se, como um farol, sobre o vago torpor do arvoredo.
Uma mulher estava encostada a uma das colunas, descalça, vestida com um roupão do hotel, fumando. Abdullah Ibrahimo aproximou-se dela, em silêncio, convencido de que continuava estendido na sua cama e de que aquele era um desdobramento imprevisto do pesadelo inicial. Tão certo estava disso que, tendo-se colocado ao lado dela, se atreveu a pedir-lhe um cigarro. Rita Hayworth olhou-o com um sorriso triste, levou a mão ao bolso do roupão e estendeu-lhe um maço de Chesterfield. Abdullah tirou um cigarro, inclinou-se e acendeu-o no dela.
– O que faz você nos meus sonhos, Rita? – perguntou, num inglês atormentado.
– Não se iluda, meu jovem – respondeu-lhe a atriz, num espanhol perfeito. – Quase sempre, os sonhos dos homens são o pesadelo das mulheres.
Afagou-lhe o rosto num gesto distraído, voltou-lhe as costas e desapareceu nas sombras. Abdullah Ibrahimo retornou ao seu quarto, voltou a estender-se na cama e adormeceu. Despertou já o sol ia alto. Alguém socava com vigor a porta do seu quarto. Ergueu-se tonto, com a cabeça a latejar, e girou a maçaneta. Armando, o seu melhor amigo, entrou de rompante, sentou-se num sofá, traçou a perna, e sem se conseguir conter mais tempo largou a espantosa novidade:
– Sabes quem dormiu esta noite aqui, neste teu hotel, a poucos metros de onde estás agora? A Rita Hayworth!
– É impossível!
– É verdade! Veio com o marido, o príncipe Ali Aga Khan, visitar a comunidade ismaelita…
O velho terminou de contar a história e riu-se. Foi uma gargalhada forte e clara, que, por instantes, lhe devolveu a juventude. Logo a seguir, porém, sofreu um ataque de tosse. Esperei que recuperasse:
– Não a voltou a ver?
– Foi-se embora. Pouco depois, divorciou-se do Aga Khan. Naturalmente, nunca mais voltou a Moçambique.
– E o senhor?
– Eu?! Emigrei. Trabalhei cinquenta anos em Hollywood, num estúdio, como engenheiro de som. Mas nunca mais a vi. Voltei já velho a Moçambique. Por vezes, venho até aqui assistir ao pôr do Sol. Isso que os velhos dizem, que o tempo passa a correr, é a mais idiota das mentiras.
tempo não passa. Aquela noite continua aqui.
Tirou um cigarro do bolso do casaco:
– Chesterfield. Até hoje só fumo Chesterfield.
Já não chovia. Deixei-o ali, a fumar, e fui-me embora.
Foi então que o vi. Estava sentado numa cadeira de verga, vestido de branco, sapatos, calças, camisa e casaco, com uma bengala de punho de marfim atravessada no regaço. Pareceu-me, todo ele, uma assombração benigna. Ofereceu-me um sorriso largo, de dentes muito brancos, que iluminou por instantes a penumbra húmida, como um rápido golpe de sol:
– Bem-vindo ao Grande Hotel do Lumbo! – Estendeu-me a mão. – Abdullah Ibrahimo, um sonhador distópico, ao seu serviço.
Contou-me que antes de ser transformado em hotel o edifício pertencera à família dele. Um dos trisavôs veio do Iémen para a Ilha de Moçambique, no início do século XIX, enriquecendo com a compra e venda de escravos e marfim. Algumas daquelas paredes haviam sido erguidas por esse avô antigo, numa época em que o governador-geral de Moçambique era o negreiro mais famoso do império português, e as escunas e os pangaios se sucediam, nos principais portos da colónia, carregando escravos.
O pai, à beira da bancarrota, fora forçado a vender o edifício, logo transformado em hotel. Em 1950, Abdullah Ibrahimo era um garoto (ainda) rico, que ocupava o tempo livre lutando boxe e vendo filmes, uns atrás dos outros, no único cinema que então funcionava na Ilha de Moçambique: o Cine Imperial.
Na noite em que completou 18 anos, Abdullah foi com um grupo de amigos assistir à estreia d’A Dama de Xangai, de Orson Welles, em que este contracena com Rita Hayworth – poucos meses antes de se separar dela.
Depois do filme, os rapazes decidiram jantar no Grande Hotel do Lumbo. Sentados a uma larga mesa, saboreando lagosta grelhada e bebendo cerveja, discutiram longamente a tragédia de Michael O’Hara, um marinheiro um pouco ingénuo, interpretado por Orson Welles, que, ao apaixonar-se por uma loira misteriosa, se vê envolvido numa acusação de homicídio. Como tinha um quarto cativo no hotel, Abdullah despediu-se dos amigos e foi dormir. Acordou a meio de um pesadelo no qual Elsa Bannister, a loira misteriosa, o tentava afogar num mar escuro, infestado de tubarões, batendo-lhe repetidamente com um sapato na cabeça. Deitara-se vestido. Ao sair para a varanda, em busca de uma brisa fresca que o ressuscitasse, a roupa amarfanhada e o cabelo revolto, deu com uma lua imensa erguendo-se, como um farol, sobre o vago torpor do arvoredo.
Uma mulher estava encostada a uma das colunas, descalça, vestida com um roupão do hotel, fumando. Abdullah Ibrahimo aproximou-se dela, em silêncio, convencido de que continuava estendido na sua cama e de que aquele era um desdobramento imprevisto do pesadelo inicial. Tão certo estava disso que, tendo-se colocado ao lado dela, se atreveu a pedir-lhe um cigarro. Rita Hayworth olhou-o com um sorriso triste, levou a mão ao bolso do roupão e estendeu-lhe um maço de Chesterfield. Abdullah tirou um cigarro, inclinou-se e acendeu-o no dela.
– O que faz você nos meus sonhos, Rita? – perguntou, num inglês atormentado.
– Não se iluda, meu jovem – respondeu-lhe a atriz, num espanhol perfeito. – Quase sempre, os sonhos dos homens são o pesadelo das mulheres.
Afagou-lhe o rosto num gesto distraído, voltou-lhe as costas e desapareceu nas sombras. Abdullah Ibrahimo retornou ao seu quarto, voltou a estender-se na cama e adormeceu. Despertou já o sol ia alto. Alguém socava com vigor a porta do seu quarto. Ergueu-se tonto, com a cabeça a latejar, e girou a maçaneta. Armando, o seu melhor amigo, entrou de rompante, sentou-se num sofá, traçou a perna, e sem se conseguir conter mais tempo largou a espantosa novidade:
– Sabes quem dormiu esta noite aqui, neste teu hotel, a poucos metros de onde estás agora? A Rita Hayworth!
– É impossível!
– É verdade! Veio com o marido, o príncipe Ali Aga Khan, visitar a comunidade ismaelita…
O velho terminou de contar a história e riu-se. Foi uma gargalhada forte e clara, que, por instantes, lhe devolveu a juventude. Logo a seguir, porém, sofreu um ataque de tosse. Esperei que recuperasse:
– Não a voltou a ver?
– Foi-se embora. Pouco depois, divorciou-se do Aga Khan. Naturalmente, nunca mais voltou a Moçambique.
– E o senhor?
– Eu?! Emigrei. Trabalhei cinquenta anos em Hollywood, num estúdio, como engenheiro de som. Mas nunca mais a vi. Voltei já velho a Moçambique. Por vezes, venho até aqui assistir ao pôr do Sol. Isso que os velhos dizem, que o tempo passa a correr, é a mais idiota das mentiras.
tempo não passa. Aquela noite continua aqui.
Tirou um cigarro do bolso do casaco:
– Chesterfield. Até hoje só fumo Chesterfield.
Já não chovia. Deixei-o ali, a fumar, e fui-me embora.
quarta-feira, agosto 28
Seja feliz e faça os outros felizes
O homem sente estranho prazer inconsciente em dar as notícias tristes. E, inconscientemente, só gosta de dar as notícias realmente tristes que, quanto mais tristes, mais lhe satisfazem.
No Brasil e, especialmente, no Rio de Janeiro (onde tudo acontece além da conta), o Homem ultrapassou o prazer inconsciente de dar as notícias desagradáveis, para atingir o gozo em cada vez que consegue fazer alguém muito infeliz.
A simples explicação do fenômeno talvez não convença o leitor de que estamos falando a sério. Desçamos, portanto, a alguns exemplos. Primeiro: É com certa dificuldade, vencendo vários limites e impedimentos seus, que você consegue fazer qualquer confissão mais agradável a alguém. Pense em quantas vezes você teve que discutir com você mesmo, para dizer que a gravata do seu amigo era bonita. Conseguiu dizer, sim, mas depois de se considerar mesquinho por não ter dito antes, na frase descuidada que lhe veio do coração à boca. Segundo: Pense em quantas vezes você disse a alguém que a gravata não lhe ia bem. A gravata aqui vale todas as coisas que você considera e elogia. Pense ainda na hipocrisia dos vários preâmbulos e rodeios que já fez para censurar – uma gravata: "Você me desculpe, mas"... "Você não me leve a mal, mas"... E sempre esta detestável e mais hipócrita das preparações: "Eu vou lhe falar com toda a minha franqueza." Tenho horror a quem me diz franquezas de bar. Na realidade, só existe uma franqueza, que é a do amor.
Não é possível curar a humanidade de sua eterna má vontade. Mas, ao menos aqui no Rio de Janeiro, assim como se fazem as semanas "da Asa" e "do Trânsito", podia-se organizar a "Semana da Felicidade". O comércio varejista não entraria (como nos dias do Papai e da Mamãe) com a sua propaganda ostensiva de rádios e televisores. Não haveria presente na "Semana da Felicidade" para não corromper a constante felicidade, que se estaria oferecendo. Apenas as pessoas, durante sete dias, só iriam dizer coisas agradáveis umas às outras.
Nesta altura é preciso dar uma explicação necessária. Dizer coisas agradáveis não seria dizer a Maria que ela é bonita, quando ela é feia; nem a Pedro que ele está mais magro, quando Pedro está visivelmente mais gordo. Não. Sem grande esforço, encontrar-se-á, em cada pessoa, dez valores elogiáveis. E, quando não houver um só, conte-se uma história qualquer, que faça bem. Conte-se, por exemplo, como foi o amanhecer. Como ficou o céu, com os laivos vermelhos do amanhecer. Como estava o mar, na primeira luz sobre o seu brilho baço do amanhecer. Ou se fale de um trecho de canção, da ária ou de um tema tocado por Milles Davies. Do piano de Garner, seu ritmo comparável ao improviso da Fitzgerald e da Vaughan. Ou, com patriotismo, do sax-tenor de Cipó ou dos trombones, do irmão Maciel mais novo. Conte-se bem uma cidade inesperada de sua viagem. Como eram as montanhas ou a cor da planície. As pessoas, seus olhos e suas blusas.
Na criação da "Semana da Felicidade", não sei para quem deva apelar. Não sei a que governo transmitir a ideia. Federal ou municipal. Ou a que departamento de turismo. Não. O apelo tem que ser feito a cada um dos meus possíveis leitores e por cada um transmitido às pessoas de sua sociedade. Quanto a mim, devo dizer que vivo, permanentemente, em semana de felicidade. Quando não posso fazer alguém feliz, com uma confissão ou uma história, não digo nada. Em troca, peço que não me tirem a alegria. Que não deem noticias, sobre mim e sobre os outros, que, de leve, possam arranhar minha naturalidade feliz. E, de um modo especial, não me digam franquezas.
Antônio Maria, "As crônicas de humor de Antônio Maria"
terça-feira, agosto 27
As cores
Maria Alice abandonou o livro onde seus dedos longos liam uma história de amor. Em seu pequeno mundo de volumes, de cheiros, de sons, todas aquelas palavras eram a perpétua renovação dos mistérios em cujo seio sua imaginação se perdia. Esboçou um sorriso... Sabia estar só na casa que conhecia tão bem, em seus mínimos detalhes, casa grande de vários quartos e salas onde se movia livremente, as mãos olhando por ela, o passo calmo, firme e silencioso, casa cheia de ecos de um mundo não seu, mundo em que a imagem e a cor pareciam a nota mais viva das outras vidas de ilimitados horizontes. Como seria cor e o que seria? Conhecia todas pelos nomes, dava com elas a cada passo nos seus livros, soavam aos seus ouvidos a todo momento, verdadeira constante de todas as palestras.
Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser claros.Que seria o claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica de todos os seus, marca dos amigos da casa, de todos os amigos, algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha, às vezes das entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma condição social? Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? Ë branco? Raramente se enganava agora.
Já sabia... Nas pessoas, sabia... Às vezes, pelo olfato, outras, pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas vezes - e aquilo a perturbava - encontrasse também a cor social mais nobre no trato das panelas e na limpeza da casa.
Nas paredes, porém, nos objetos, já não sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou de superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a abstração deprimente da fealdade, o mesmo negro nos gatos, nos cavalos, nas estatuetas, vinha sempre conjugado à idéia de beleza, que ela sabia haver numa sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa Polonaise de Chopin, na voz de uma cantora, num gesto de ternura humana.
Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios (seriam os seus vermelhos também e convidariam ao beijo, como nos anúncios de rádio?), em certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha do centro, em determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona que ficava à direita e onde se afundava feliz, para ouvir novelas?
Que seria a cor, que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora desagradava? E como seria o amarelo, para alguns padrão de mau gosto, mas que tantas vezes provocava entusiasmo nos comentários do mundo onde os olhos viam? E que seria ver? Era o sentido certamente que permitia evitar as pancadas, os tropeções, sair à rua sozinho, sem apoio de bengala, e aquela inquieta procura de mãos divinatórias que tantas vezes falhavam. Era o sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos corpos, nas feições, o bonito, variedade do belo e de outras palavras sempre ouvidas e empregadas e que bem compreendia, porque o podia sentir na voz e no caráter das pessoas, nas atitudes e nos gestos humanos, no Rêve d´ Amour, que executava ao piano, e em muita coisa mais...
Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos, mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada... Claro que via muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam as coisas e seria capaz de descrevê-las nos menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor... Se lhe pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer, quando tocava em Ana Beatriz, se estava com o vestido bege ou com a blusa lilás. E de tal maneira a cor flutuava em seus lábios, nas palestras diárias, que para todos os familiares era como se a visse também.
- Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz... Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado. Seria mais feliz se pudesse estar sempre sozinha como agora, movendo-se como sombra muda pela casa, certa de não provocar exclamações repentinas de pena, quando se contundia ou tropeçava nas idas e vindas do cotidiano labor.
- Machucou, meu bem?
Doía mais a pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante da família assustada e do remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar, mas teimava em dizer que não fora nada. E quando insistiam, com visita presente, para que tocasse piano, era sistemática a recusa.
- Maria Alice é modesta, odeia exibições...
Outro era o motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar no mundo dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente...
Mas como a remordia a admiração piedosa dos amigos... As palmas e os louvores vinham sempre cheios de pena e havia grosserias trágicas em certos entusiasmos, desde o espanto infantil por vê-la acertar direitinho com as teclas à exclamação maravilhada de alguns:
- Muita gente que enxerga se orgulharia de tocar assim...
Nunca Maria Alice o dissera, mas seu coração tinha ternuras apenas para os que não a avisavam de haver uma cadeira na frente ou não a preveniam contra a posição do abajur.
- Eu sei... eu já sei...
E como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava na descrição das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o recém-chegado, antes que se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma sutilezas. Sem que lhe dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou feio. E antes que qualquer outro, lia-lhe o caráter e o temperamento.
Àqueles pequeninos milagres de sua intuição e de sua capacidade de observar, todos estavam habituados em casa. Por isso lhe falavam sempre em termos de quem via, para quem via. E nesses termos lhes falava também. O livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava liberto. Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a família julgara que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade, sabia facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse conta disso ou dissesse que enxergava. Pela simples linguagem, pela maneira de agir o sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes, O seu, de humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da piedade e da cor.
- Me dá o cinzeiro vermelho, Maria Alice...
Maria Alice dava.
- Vou ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria Alice?
Maria Alice aconselhava.
Ninguém conseguia entender como sabia ela indicar qual o sapato ou a bolsa que ia melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre acertava. Assim como ninguém sabia que, com o tempo, Maria Alice fora identificando as cores com sentimentos e coisas. O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Um lugar, com certeza. Tinha mil e uma idéias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina, bem-aventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que associava à idéia do veludo, mais própria do cinza, apesar de insistirem em que o céu era azul.
Aquelas associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente era o grande mistério. Sentira muitas vezes que o cinza pertencia a substâncias ásperas ou duras. Que o branco estava no mármore duro e na folha de papel, leve e flexível. E que o negro estava num cavalo que relinchava inquieto, com um sopro vigoroso de vida, e na suavidade e leveza de um vestido de baile, mas era ao mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a marca inexplicável da inferioridade. E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven, dos mistérios para eles tão claros da música eterna.
Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz.
De como se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado... De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara, horrorizado:
- Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca! Mulato era cor.
Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores... Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema. Ana Beatriz ia contar-lhe o filme todo, com certeza.
O rumor - passos e vozes - encheu a casa.
- Tudo azul? - perguntou Ana Beatriz, entrando na sala.
- Tudo azul - respondeu Maria Alice.
Era, com certeza, a nota marcante de todas as coisas para aqueles cujos olhos viam, aqueles olhos que tantas vezes palpara com inveja calada e que se fechavam, quando os tocava, sensíveis como pássaros assustados, palpitantes de vida, sob seus dedos trêmulos, que diziam ser claros.Que seria o claro, afinal? Algo que aprendera, de há muito, ser igual ao branco. Branco, o mesmo que alvo, característica de todos os seus, marca dos amigos da casa, de todos os amigos, algo que os distinguia dos humildes serviçais da copa e da cozinha, às vezes das entregas do armazém. Conhecia o negro pela voz, o branco pela maneira de agir ou falar. Seria uma condição social? Seguramente. Nos primeiros tempos, perguntava. É preto? Ë branco? Raramente se enganava agora.
Já sabia... Nas pessoas, sabia... Às vezes, pelo olfato, outras, pelo tom de voz, quase sempre pela condição. Embora algumas vezes - e aquilo a perturbava - encontrasse também a cor social mais nobre no trato das panelas e na limpeza da casa.
Nas paredes, porém, nos objetos, já não sentia aquelas cores. E se ouvia geralmente um tom de desprezo ou de superioridade, quando se falava no negro das pessoas, que envolvia sempre a abstração deprimente da fealdade, o mesmo negro nos gatos, nos cavalos, nas estatuetas, vinha sempre conjugado à idéia de beleza, que ela sabia haver numa sonata de Beethoven, numa fuga de Bach, numa Polonaise de Chopin, na voz de uma cantora, num gesto de ternura humana.
Que seria a cor, detalhe que fugia aos seus dedos, escapava ao seu olfato conhecedor das almas e dos corpos, que o seu ouvido apurado não aprendia, e que era vermelho nas cerejas, nos morangos e em certas gelatinas, mas nada tinha em comum com o adocicado de outras frutas e se encontrava também nos vestidos, nos lábios (seriam os seus vermelhos também e convidariam ao beijo, como nos anúncios de rádio?), em certas cortinas, naquele cinzeiro áspero da mesinha do centro, em determinadas rosas (e havia brancas e amarelas), na pesada poltrona que ficava à direita e onde se afundava feliz, para ouvir novelas?
Que seria a cor, que definia as coisas e marcava os contrastes, e ora agradava, ora desagradava? E como seria o amarelo, para alguns padrão de mau gosto, mas que tantas vezes provocava entusiasmo nos comentários do mundo onde os olhos viam? E que seria ver? Era o sentido certamente que permitia evitar as pancadas, os tropeções, sair à rua sozinho, sem apoio de bengala, e aquela inquieta procura de mãos divinatórias que tantas vezes falhavam. Era o sentido que permitia encontrar o bonito, sem tocar, nos vestidos, nos corpos, nas feições, o bonito, variedade do belo e de outras palavras sempre ouvidas e empregadas e que bem compreendia, porque o podia sentir na voz e no caráter das pessoas, nas atitudes e nos gestos humanos, no Rêve d´ Amour, que executava ao piano, e em muita coisa mais...
Ver era saber que um quadro não constava apenas de uma superfície estranha, áspera e desigual, sem nenhum sentido para o seu mundo interior, por vezes bonita, ao seu tato, nas molduras, mas que para os outros figurava casas, ruas, objetos, frutas, peixes, panelas de cobre (tão gratas aos seus dedos), velhos mendigos, mulheres nuas e, em certos casos, mesmo para os outros, não dizia nada... Claro que via muito pelos olhos dos outros. Sabia onde ficavam as coisas e seria capaz de descrevê-las nos menores detalhes. Conhecia-lhes até a cor... Se lhe pedissem o cinzeiro vermelho, iria buscá-lo sem receio. E sabia dizer, quando tocava em Ana Beatriz, se estava com o vestido bege ou com a blusa lilás. E de tal maneira a cor flutuava em seus lábios, nas palestras diárias, que para todos os familiares era como se a visse também.
- Ponha hoje o vestido verde, Ana Beatriz... Dizia aquilo um pouco para que não dessem conta da sua inferioridade, mais ainda para não inspirar compaixão. Porque a piedade alheia a cada passo a torturava e Maria Alice tinha pudor de seu estado. Seria mais feliz se pudesse estar sempre sozinha como agora, movendo-se como sombra muda pela casa, certa de não provocar exclamações repentinas de pena, quando se contundia ou tropeçava nas idas e vindas do cotidiano labor.
- Machucou, meu bem?
Doía mais a pergunta. Certa vez a testa sangrava, diante da família assustada e do remorso de Jorge, que deixara um móvel fora do lugar, mas teimava em dizer que não fora nada. E quando insistiam, com visita presente, para que tocasse piano, era sistemática a recusa.
- Maria Alice é modesta, odeia exibições...
Outro era o motivo. Ela muita vez bem que ardia em desejos de se refugiar no mundo dos sons, para escapar aos mexericos de toda a gente...
Mas como a remordia a admiração piedosa dos amigos... As palmas e os louvores vinham sempre cheios de pena e havia grosserias trágicas em certos entusiasmos, desde o espanto infantil por vê-la acertar direitinho com as teclas à exclamação maravilhada de alguns:
- Muita gente que enxerga se orgulharia de tocar assim...
Nunca Maria Alice o dissera, mas seu coração tinha ternuras apenas para os que não a avisavam de haver uma cadeira na frente ou não a preveniam contra a posição do abajur.
- Eu sei... eu já sei...
E como tinha os outros sentidos mais apurados, sempre se antecipava na descrição das pessoas e coisas. Sabia se era homem ou mulher o recém-chegado, antes que se pusesse a falar. Pela maneira de pisar, por mil e uma sutilezas. Sem que lhe dissessem, já sabia se era gordo ou magro, bonito ou feio. E antes que qualquer outro, lia-lhe o caráter e o temperamento.
Àqueles pequeninos milagres de sua intuição e de sua capacidade de observar, todos estavam habituados em casa. Por isso lhe falavam sempre em termos de quem via, para quem via. E nesses termos lhes falava também. O livro abandonado sobre a mesa, o pensamento de Maria Alice caminhava liberto. Recordava agora o largo tempo que passara no Instituto, onde a família julgara que lhe seria mais fácil aprender a ler. Detestava o ambiente de humildade, raramente de revolta, que lá encontrara. Vivendo em comunidade, sabia facilmente quais os que enxergavam, sem que nenhum destes se desse conta disso ou dissesse que enxergava. Pela simples linguagem, pela maneira de agir o sabia. E ali começara a odiar os dois mundos diferentes, O seu, de humildes e resignados, cônscios de sua inferioridade humana, o outro, o da piedade e da cor.
- Me dá o cinzeiro vermelho, Maria Alice...
Maria Alice dava.
- Vou ao cinema com o vestido claro ou com aquele estampado, Maria Alice?
Maria Alice aconselhava.
Ninguém conseguia entender como sabia ela indicar qual o sapato ou a bolsa que ia melhor com este ou aquele vestido. Quase sempre acertava. Assim como ninguém sabia que, com o tempo, Maria Alice fora identificando as cores com sentimentos e coisas. O branco era como barulho de água de torneira aberta. Cor-de-rosa se confundia com valsa. Verde, aprendera a identificá-lo com cheiro de árvore. Cinza, com maciez de veludo. Azul, com serenidade. Diziam que o céu era azul. Que seria o céu? Um lugar, com certeza. Tinha mil e uma idéias sobre o céu. Deus, anjos, glória divina, bem-aventurança, hinos e salmos. Hendel. Bach. Mas sabia haver um outro material, sobre as pessoas e casas, feito de nuvens, que associava à idéia do veludo, mais própria do cinza, apesar de insistirem em que o céu era azul.
Aquelas associações materiais, porém, não a satisfaziam. A cor realmente era o grande mistério. Sentira muitas vezes que o cinza pertencia a substâncias ásperas ou duras. Que o branco estava no mármore duro e na folha de papel, leve e flexível. E que o negro estava num cavalo que relinchava inquieto, com um sopro vigoroso de vida, e na suavidade e leveza de um vestido de baile, mas era ao mesmo tempo a cor do ódio e da negação, a marca inexplicável da inferioridade. E agora Maria Alice voltava outra vez ao Instituto. E ao grande amigo que lá conhecera. Voltavam as longas horas em que falavam de Bach, de Beethoven, dos mistérios para eles tão claros da música eterna.
Lembrava-se da ternura daquela voz, da beleza daquela voz.
De como se adivinhavam entre dezenas de outros e suas mãos se encontravam. De como as palavras de amor tinham irrompido e suas bocas se encontrado... De como um dia seus pais haviam surgido inesperadamente no Instituto e a haviam levado à sala do diretor e se haviam queixado da falta de vigilância e moralidade no estabelecimento. E de como, no momento em que a retiravam e quando ela disse que pretendia se despedir de um amigo pelo qual tinha grande afeição e com quem se queria casar, o pai exclamara, horrorizado:
- Você não tem juízo, criatura? Casar-se com um mulato? Nunca! Mulato era cor.
Estava longe aquele dia. Estava longe o Instituto, ao qual não saberia voltar, do qual nunca mais tivera notícia, e do qual somente restara o privilégio de caminhar sozinha pelo reino dos livros, tão parecido com a vida dos outros, tão cheio de cores... Um rumor familiar ouviu-se à porta. Era a volta do cinema. Ana Beatriz ia contar-lhe o filme todo, com certeza.
O rumor - passos e vozes - encheu a casa.
- Tudo azul? - perguntou Ana Beatriz, entrando na sala.
- Tudo azul - respondeu Maria Alice.
Orígenes Lessa
segunda-feira, agosto 26
Frases no saldão
Mulher opulenta: os homens de sua vida são mais de cinquenta.
Que desagradáveis são os fantasmas que, não se habituando ao fuso horário, vêm nos assombrar ao meio-dia, em vez da meia-noite, e chegam tropeçando em tudo, bêbados de saquê.
Há quem encare o amor com olhos de secretário de vias públicas e julgue que tudo se resume em tapar buracos.
Os que morrerão de amor ainda não sabem, mas já há quem note como vão se parecendo cada dia mais com os tolos e os mártires.
Quem nasce drewnick não morre leminski.
Um erro muito comum entre escritores é o de julgarem que estão a todo momento obrigados a dizer alguma coisa.
Triste é pensar que os mortos não ouvem mais Chopin.
Os poetas têm uma vantagem: pelo menos no começo, os leitores esforçam-se para ver algo de especial neles, ainda que seja só o cavanhaque.
A literatura é coisa séria, sim. Mas não exageremos. Ela não é, como gostaríamos, mais importante que a vida.
O nome atribuído ao rumo depende do fim da história: o do medíocre é caminho, o do herói é trajetória.
Se eu fosse me analisar, diria que continuo sendo um tolo, cada dia mais consciente.
Os parnasianos guardavam as rimas ricas num cofre trancado com chave de ouro.
Não tenha pressa: o passado, o presente e o futuro não são mais do que vida pregressa.
O sexto sentido acha que já é tempo de ser promovido.
Quando eu confiar mais em você, pode ser que lhe mostre minha tristeza. Um dia exibi meu amor e foi como se um palhaço caísse de ponta-cabeça no picadeiro.
O amor tem mais contra que indicações.Raul Drewnick
***
Que desagradáveis são os fantasmas que, não se habituando ao fuso horário, vêm nos assombrar ao meio-dia, em vez da meia-noite, e chegam tropeçando em tudo, bêbados de saquê.
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John Michael Carter |
Devemos servir à poesia com fervor, como se tivéssemos algo a lhe dar além de nossa presunção e nossa mediocridade.
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Há quem encare o amor com olhos de secretário de vias públicas e julgue que tudo se resume em tapar buracos.
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Os que morrerão de amor ainda não sabem, mas já há quem note como vão se parecendo cada dia mais com os tolos e os mártires.
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Quem nasce drewnick não morre leminski.
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Um erro muito comum entre escritores é o de julgarem que estão a todo momento obrigados a dizer alguma coisa.
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Triste é pensar que os mortos não ouvem mais Chopin.
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Os poetas têm uma vantagem: pelo menos no começo, os leitores esforçam-se para ver algo de especial neles, ainda que seja só o cavanhaque.
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A literatura é coisa séria, sim. Mas não exageremos. Ela não é, como gostaríamos, mais importante que a vida.
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O nome atribuído ao rumo depende do fim da história: o do medíocre é caminho, o do herói é trajetória.
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Se eu fosse me analisar, diria que continuo sendo um tolo, cada dia mais consciente.
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Os parnasianos guardavam as rimas ricas num cofre trancado com chave de ouro.
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Não tenha pressa: o passado, o presente e o futuro não são mais do que vida pregressa.
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O sexto sentido acha que já é tempo de ser promovido.
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Quando eu confiar mais em você, pode ser que lhe mostre minha tristeza. Um dia exibi meu amor e foi como se um palhaço caísse de ponta-cabeça no picadeiro.
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O amor tem mais contra que indicações.Raul Drewnick
A velocidade do tempo
“Penso se serão iguais as velocidades idênticas com que caem no mar o suicida e o que se desequilibrou na esplanada”, escreveu Bernardo Soares, através de Fernando Pessoa, no “Livro do desassossego”.
Voltando aos mistérios do tempo, parece-me óbvio que uma hora ou um mês não transcorrem à mesma velocidade para uma criança ou para um adulto. As crianças habitam um tempo muito mais dilatado do que o nosso. Sentimos saudades da infância porque é como se, crescendo, perdêssemos a eternidade. A primeira década das nossas vidas é mais longa do que as cinco seguintes. Lembro-me das férias grandes, quando eu tinha dez, onze, doze anos. Três meses duravam uma vida. Hoje, esfrego um olho e lá se foi um mês; bocejo e perdi quatro ou cinco. Um Natal amarra-se ao seguinte, como se acontecessem na mesma semana. Vejo-me ao espelho e encontro o rosto do meu pai. Porém, se acaso, numa gaveta, descubro uma fotografia antiga, logo me alegra a memória daquela tarde, e volto a ter a idade que tinha quando a imagem foi fixada.
Surpreende-me que existam pessoas sofrendo de tédio — que não é outra coisa senão uma aguda consciência da passagem das horas —, depois dos quarenta anos, quando o tempo se acelera irremediavelmente. Fernando Pessoa, contudo, padecia. No referido “Livro do desassossego” são inúmeras as ocasiões em que o seu protagonista se queixa de tédio. Tenta, inclusive elaborar uma filosofia do tédio: “poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida (…) Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.” E conclui, por fim: “O tédio é a falta de uma mitologia. (…) Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.”
Eis o dilema: ou vivemos intensamente, morrendo em breves instantes, ainda que esses instantes ocupem um século; ou, como fez Fernando Pessoa, escolhemos o papel de observadores e um ofício compatível (o poeta português foi tradutor de correspondência comercial), e vamos morrendo de tédio, a cada hora, para não morrermos de vertigem em cem anos.
Quanto a mim, estou apostando numa terceira opção: guardar os últimos anos para ler e reler os livros todos que fui comprando ao longo da vida. Ler é uma outra forma de ampliar o tempo. Um bom livro é sempre uma máquina do tempo, não só por nos fazer viajar para outras eras e lugares, mas, sobretudo, pelo poder que tem de desacelerar as horas.
Uma rede confortável, uma brisa tropical, e uma boa biblioteca — é tudo o que preciso. Tenho a rede, tenho a biblioteca e confio que terei a brisa. Resta saber qual a altura certa para estender a rede.
José Eduardo Agualusa
Mário de Andrade na rede, 1921 (Lasar Segall) |
A frase vem ter comigo, de súbito, quando abro numa página qualquer a grossa edição (da responsabilidade do tradutor e pesquisador americano Richard Zenith), respondendo a uma inquietação que me ocupava no instante em que abri o livro. Isto acontece muito. Acaso ou magia, ou nem uma coisa nem outra; antes porque, como acreditava a minha avó, os livros nos escutam e dialogam conosco. Pode ser.
Voltando aos mistérios do tempo, parece-me óbvio que uma hora ou um mês não transcorrem à mesma velocidade para uma criança ou para um adulto. As crianças habitam um tempo muito mais dilatado do que o nosso. Sentimos saudades da infância porque é como se, crescendo, perdêssemos a eternidade. A primeira década das nossas vidas é mais longa do que as cinco seguintes. Lembro-me das férias grandes, quando eu tinha dez, onze, doze anos. Três meses duravam uma vida. Hoje, esfrego um olho e lá se foi um mês; bocejo e perdi quatro ou cinco. Um Natal amarra-se ao seguinte, como se acontecessem na mesma semana. Vejo-me ao espelho e encontro o rosto do meu pai. Porém, se acaso, numa gaveta, descubro uma fotografia antiga, logo me alegra a memória daquela tarde, e volto a ter a idade que tinha quando a imagem foi fixada.
Surpreende-me que existam pessoas sofrendo de tédio — que não é outra coisa senão uma aguda consciência da passagem das horas —, depois dos quarenta anos, quando o tempo se acelera irremediavelmente. Fernando Pessoa, contudo, padecia. No referido “Livro do desassossego” são inúmeras as ocasiões em que o seu protagonista se queixa de tédio. Tenta, inclusive elaborar uma filosofia do tédio: “poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida (…) Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.” E conclui, por fim: “O tédio é a falta de uma mitologia. (…) Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.”
Eis o dilema: ou vivemos intensamente, morrendo em breves instantes, ainda que esses instantes ocupem um século; ou, como fez Fernando Pessoa, escolhemos o papel de observadores e um ofício compatível (o poeta português foi tradutor de correspondência comercial), e vamos morrendo de tédio, a cada hora, para não morrermos de vertigem em cem anos.
Quanto a mim, estou apostando numa terceira opção: guardar os últimos anos para ler e reler os livros todos que fui comprando ao longo da vida. Ler é uma outra forma de ampliar o tempo. Um bom livro é sempre uma máquina do tempo, não só por nos fazer viajar para outras eras e lugares, mas, sobretudo, pelo poder que tem de desacelerar as horas.
Uma rede confortável, uma brisa tropical, e uma boa biblioteca — é tudo o que preciso. Tenho a rede, tenho a biblioteca e confio que terei a brisa. Resta saber qual a altura certa para estender a rede.
José Eduardo Agualusa
sábado, agosto 24
Moscou-Varsóvia
Pablo Gallo |
Se este avião caísse, as madrugadas de meu filho de um terror violeta se elucidariam; na tarde calcinada, a sombra de minha mulher se inflamaria; minha filha não me encontraria deitado sobre o feno, escondido atrás da porta, acima dos cata-ventos com os braços carregados de bonecas; mais do que a minha garra em um livro e um lírio não encontraria; um gesto no espelho, uma espátula de osso, um pensamento;
Se este avião caísse, em uma esquina de Ipanema, eu nunca mais esperaria;
Se este avião caísse, só uma pessoa não diria “que pena” (a que caía e se esquecia e se consumia, e só se libertaria quando de todo caísse e se esquecesse e se consumisse);
Se este avião caísse, de mim o firmamento em torvelinho se afastaria; os mortos da Lituânia e da Masuria a mim viriam, e no silêncio rodeado de verdura me receberiam; soldado quase desconhecido, mãos desligadas do corpo – exangues e sem armas – ah, a terra de ninguém eu atravessaria;
Se este avião caísse, de arquitetar a condição de criatura um arquiteto a mais desistiria; certos de que outros chegarão a construir a humana arquitetura (o que se faz há muitos anos e se fará em um dia); pousado sobre o meu peito o pássaro cruento do meio-dia; o criptógrafo egípcio afinal se explicaria; em fragmentos candentes, a minha carne emigraria; espantalho em farrapos, só o vento de leve me espantaria;
Se este avião caísse, sob as arcadas do pátio a poça de sal se extinguiria; a minha túnica amarela entre os anjos se sortearia; sob as telhas dos dragões dourados, os seus flocos, indiferente, a paineira sacudiria; na colina resplendente, quem soubesse ler, leria: “aqui pousou uma criança que quase nada compreendia”; até que outra morte nos separe, o meu nome no tronco se resignaria;
Se este avião caísse, este papel em cinzas arderia; a estrela rubra do poema nenhum jornal publicaria; fosse cair daqui a pouco, ainda assim o escreveria; a vida e a morte são as amantes, são a esposa, da poesia;
Se este avião caísse, os meus vizinhos compreenderiam; lembrando-se dos meus cabelos no elevador, uma intuição qualquer no ar lhes diria que só não fui um amigo por falta de tempo ou covardia; mas pode alguém perfeitamente amar o seu vizinho se apenas, grave, pela manhã lhe diz “bom dia”; e então, sentimentais e sem razão, de mim, coitados, se apiedariam; e de se sentirem tão sensíveis, em fino prazer espiritual tudo (de mim) enfim se acabaria;
Se este avião caísse, a música de meu apartamento ensurdeceria; os volumes nas estantes, de já não ter quem os lesse como eu os lia, pardos e fechados ficariam; outros mais sábios vir e servir-se poderiam; mas o meu jeito de ler e pensar desapareceria; no entanto, se este avião caísse, daquilo que é apenas meu a orgulhar-me não chegaria;
Se este avião caísse, já ninguém mais meditaria na ave que passou gemendo contra o vento na bruma fria; o segredo que não cheguei a tocar a ninguém mais preocuparia; só se a meu filho legasse a vocação da tristeza e o heroísmo da alegria;
Se este avião caísse, decerto me compadeceria dos que caíssem comigo sem a coragem da poesia; embora talvez fosse eu quem mais saudades levaria; poentes roxos de Minas, praias aéreas da Bahia; chapéu de palha de Leda, olhos castanhos de Lilia; pubescência de Teresa, experiência de Maria; prosadores da Irlanda, poetas da Andaluzia; Etna fumegando em Taormina, em Siena a Piazza della Signoria; manhãs de iodo na praia, noites etílicas de boemia; bailarinas de Leningrado, gaivotas da Normandia; sorriso da menina, do menino a euforia; Wagner compondo o Parsifal, Nietzsche uivando em Sirls Maria; a mulher que foi comigo, a que não foi mas iria; tantas que, mais houvera, para que de vez caísse, pediria;
Se este avião caísse com ele cairia um homem que pelo menos entenderia a fábula da folha que se desprendeu e desaparecia; e assim seu coração na terra, no mar e no céu, como de triste e maduro caísse, não se surpreenderia, nem reclamaria; pois esse aflito coração, de ter amado e sofrido, na amplitude da morte se conformaria;
Se este avião caísse, em um domingo azul do mar um peixe até a pedra nadaria; não encontrando o meu anzol, ao alto-mar regressaria; desse desencontro tecido de tão lindos equívocos, a sua carne se salvaria; e o domingo azul do mar ainda mais azul reluziria.
Paulo Mendes Campos
sexta-feira, agosto 23
Somos a primeira pessoa do plural
Zbigniew Pronaszko |
Há três ou quatro anos, caminhava com um conhecido no aeroporto. De repente, ouviu-se um estalido. Ele agarrou-se ao peito com as duas mãos, caiu de joelhos e, pálido, esperou por morrer. Não morreu. Tinha-lhe rebentado um isqueiro no bolso da camisa. Aliviado, encostado a um balcão, a beber um copo de água, explicou que esse ardor repentino e esse susto pareceram-lhe um ataque cardíaco. Nunca tinha tido um ataque cardíaco antes, por isso confiou em descrições vagas, a que nunca tinha realmente prestado muita atenção.
Há alguns anos também, talvez um pouco mais do que três ou quatro, tinha acabado de participar num jantar cordial, reconfortante. Toda a gente estava bem disposta, à porta dos anfitriões, longa despedida, graças, à espera de táxi. De repente, tocou o telefone de um senhor com quem tinha estado a conversar durante todo o serão. Ninguém reparou nesse telefonema até ao momento em que o senhor começou a chorar convulsivamente. Ficámos todos a olhar sem saber como chegar até ele. Tínhamos braços, estendíamo-los na sua direcção, mas continuavam distantes.
Irritamo-nos com a existência uns dos outros. Fazemos sinais de luzes àquele homem com setenta anos, num carro dos anos setenta, que anda a setenta quilómetros por hora na auto-estrada. Contrariados, esperamos por aquela pessoa que atravessa a passadeira, enchemos as bochechas de ar e sopramos. Impacientes, batemos no volante. Daí a minutos, depois de estacionarmos o carro, somos essa pessoa a atravessar a passadeira. Da mesma maneira, daqui a algum tempo, não muito, seremos esse homem com setenta, dos setenta, a setenta. O tempo passa. Se deitarmos lixo para o chão, alguém o apanhará.
Um amigo que teve um AVC, que passou por uma reabilitação profunda, que enfrentou a morte e a paralisia, depois de anos de fisioterapia, depois de esforço gigante e sofrimento gigante, falou-me da forma como esse susto muda tudo. Passa-se a apreciar aquilo que realmente importa. A imensa maioria das preocupações transformam-se em luxos ridículos, desprezíveis, alimentados pela cegueira. Após essa experiência de quase morte, ganha-se uma nitidez invulgar, que, no entanto, esteve sempre lá. Para percebê-la, bastava levar a sério a promessa de transitoriedade de tudo e, também, levar a sério essa palavra, esse planeta: o amor. Ao ouvi-lo, fui capaz de entender aquilo que dizia. Depois, também fui capaz de entender quando me disse: mas, sabes, ao fim de algum tempo, esquecemo-nos, voltamos a tomar tudo por garantido e voltamos a cometer os mesmos erros.
Repito para mim próprio: estamos tão perto uns dos outros. Não há nenhum motivo para acreditarmos que ganhamos se os outros perderem. Os outros não são outros porque levam muito daquilo que nos pertence e que só pode existir sendo levado por eles. Eles definem-nos tanto quanto nós os definimos a eles. Eles são nós. Eles somos nós. Se tivermos essa consciência, podemos usar todo o seu tamanho. Mesmo que pudéssemos existir sozinhos, de olhos fechados, com os ouvidos tapados, seríamos já bastante grandes, mas existe algo muito maior do que nós. Fazemos parte dessa imensidão. Somos essa imensidão que, vista daqui, parece infinita.
José Luís Peixoto
quinta-feira, agosto 22
Nêmia por uma menina
Delphin Enjolras |
Por que acrescentar à abjeção do mundo uma nota de trágica tristeza? É o que sempre me perguntei. Não estou aqui para tornar o mundo mais bonito. Não tenho este dom. Nem posso impedir que o mundo seja tão feio quanto às vezes se mostra. É até o caso de denunciar essa feiura. Quem sabe inspire horror. Um único leitor que seja. E me basta. O que importa é isto: a sintonia. Essa reciprocidade, de peito a peito. A palpitação simultânea em dois corações. De longe ou de perto, tanto faz.
Essa dor eu já vi. Dela, graças a Deus, fui poupado. Essa dor que subverte a ordem natural das coisas. O próprio universo, lá na infinita distância, estremece de horror. Vêm daí os cataclismos. As calamidades que constituem um como protesto da natureza. Nada pode ser indiferente à dor. Há certas dores que irrompem de uma misteriosa nascente. Cega, a tragédia não tem compromisso com a lógica. O raio cai onde quer. E às vezes cai do céu azul.
Todos estamos fartos de saber que a violência anda à solta. Poucos não a têm visto de cara. Ou sofrido na própria carne. Dores são dores e cada um sabe da sua. Essa é, porém, uma dor que dói na pauta do absurdo. A viúva tem lágrimas bastantes. E têmpera. Os parentes próximos, todos têm ainda no peito esse coice de um susto. Nem parece que aconteceu. Pesadelo dentro de um pesadelo, não dá para acreditar. Todos pedem, ansiosos, para acordar.
Mas você, por que você? Seu pai que até ontem era eterno. Seu herói onipotente, que dispensava heroísmo e prova de força. Nos seus seis anos, você sabia, você sabe que ele era, que ele é o paraíso. Até no nome. Na constelação familiar, era ele o protagonista. Há muitos jeitos de amar. Mas amor assim, só o dele. Esse mútuo entendimento. Esse carinho que dispensa palavras. Que palavra eu agora lhe posso dizer? Viva, menina. Viva e seja feliz. Por amor ao seu pai. Seu paizinho, nos desculpe a todos, que os bandidos mataram.
Otto Lara Resende
quarta-feira, agosto 21
Brasileiro, homem do amanhã
Há em nosso povo duas constantes que nos induzem a sustentar que o Brasil é o único país brasileiro de todo o mundo. Brasileiro até demais. Constituindo as colunas da brasilidade, as duas constantes, como todos sabem, são: 1) a capacidade de dar um jeito; 2) a capacidade de adiar.
A primeira é ainda escassamente conhecida, e muito menos compreendida, no estrangeiro; a segunda, no entanto, já anda bastante divulgada no exterior, sem que o corpo diplomático contribua direta ou sistematicamente para isso.
Aquilo que Oscar Wilde e Mark Twain diziam apenas por humorismo (nunca se fazer amanhã aquilo que se pode fazer depois de amanhã) não é no Brasil propriamente uma deliberada norma de conduta, uma diretriz de base. Não, é mais, é bem mais forte do que um princípio voluntarioso: é um instinto inelutável, uma força espontânea da estranha e surpreendente raça brasileira.
Para o brasileiro, os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada).
Adiamos em virtude de um verdadeiro e inevitável estímulo, se me permitem, psicossomático. Trata-se de um reflexo condicionado, pelo qual, proposto um problema a um brasileiro, ele reage instantaneamente com as palavras: daqui a pouco; logo à tarde; só à noite; amanhã; segunda-feira.
Adiamos tudo, o bem e o mal, o bom e o mau, que não se confundem, pelo contrário, que tantas vezes se desemparelham. Adiamos o trabalho, o encontro, o almoço, o telefonema, o dentista, a conversa séria, o pagamento do imposto de renda, as férias, a reforma agrária, o seguro de vida, o exame médico, a visita de pêsames, o conserto do automóvel, o túnel para Niterói, a festa de aniversário da criança, as relações com a China, o pagamento da prestação, adiamos até o amor. Só a morte e a promissória são mais ou menos pontuais entre nós. Mesmo assim, há remédio para a promissória: o adiamento trimestral da reforma, uma instituição sacrossanta no Brasil. Quanto à morte, é de se lembrar dois poemas típicos do romantismo: na "Canção do exílio", Gonçalves Dias roga a Deus não permitir que ele morra sem que volte para lá, isto é, para cá; já Álvares de Azevedo tem aquele poema famoso cujo refrão é sintomaticamente brasileiro: "Se eu morresse amanhã!". Nem os românticos queriam morrer hoje.
Sim, adiamos por força de um incoercível destino nacional, do mesmo modo que, por força do destino, o francês poupa dinheiro, o inglês confia no "Times", o português espera o retorno de Dom Sebastião, o alemão trabalha com um furor disciplinado, o espanhol se excita diante da morte, o japonês esconde o pensamento e o americano usa gravatas insuportáveis.
O brasileiro adia; logo existe.
Como já disse, o conhecimento da nossa capacidade autóctone para a incessante delonga transpõe as fronteiras e o Atlântico. A verdade é que já está nos manuais. Ainda há pouco, lendo um livro francês sobre o Brasil, incluído numa coleção quase didática de viagens, achei no fim do volume algumas informações essenciais sobre nós e a nossa terra. Entre endereços de embaixadas e consulados, estatísticas, informações culinárias, o autor intercalou o seguinte tópico:
DES MOTS
Hier: ontem
Aujourd hui: hoje
Demain: amanhã
Le seul important est le dernier
A única palavra importante é amanhã. Esse francês malicioso agarrou-nos pela perna. O resto eu adio para a semana que vem.
Paulo Mendes Campos
O regresso à Grécia
Theodor já tinha feito 70 e tantos anos quando um dia, de repente, vivenciou algo que nunca até então havia conhecido: um bloqueio intelectual. Olhava o rolo de sua pequena máquina portátil e tinha a mente em branco, sem uma única ideia sobre a qual redigir. Saiu para caminhar à beira do oceano, algo que sempre o apaziguava. Mas desta vez não funcionou; dias, semanas, meses esteve assim, sem nada a dizer, oprimido pela paralisia e a constipação intelectuais. Gunilla, sua mulher, inquieta, propôs uma viagem. Por que não à Grécia, sua terra natal? Do fundo de sua desmoralização, ele aceitou.
Na manhã seguinte, na antiga pensão onde o casal se hospedava, Theodor se levantou logo cedo, como sempre havia feito na Suécia. Preparou sua maquininha portátil e, sentindo que todo o corpo tremia, começou a escrever. Com a mesma insegurança e o terror de se equivocar em cada palavra, como havia feito em cada manhã nesse meio século de vida sueca. Mas desta vez não escrevia em sua língua adotada, e sim em grego. Sem deixar de tremer, cada vez mais morto de medo, as palavras fluíam, enchiam as páginas e ele sentia uma excitação extraordinária, a mesma que vivenciou lá, no fundo dos tempos, quando escreveu sua primeira história sueca.
O livro escrito em grego por Theodor Kallifatides – o primeiro de sua história de escritor – acaba de ser traduzido ao espanhol por Selma Ancira (Galaxia Gutemberg) e se chama Otra Vida por Vivir (Outra vida por viver). Comoveu-me profundamente. Pela história que conta e que acabo de resumir sucintamente, mas também pela naturalidade e a destreza que emprega ao contar, como se se tratasse de algo perfeitamente natural, e não o cataclismo psicológico que deve ter sido, para esse quase octogenário, redescobrir a língua de sua infância, a língua esquecida, substituída pela do imigrante, que, após aquele bloqueio traumático, redescobre o grego e ao mesmo tempo recupera uma vocação que acreditava estar perdendo. É um livro muito belo, o de uma verdadeira morte e ressurreição espiritual, um milagre contado com a tranquila naturalidade com que se descreve um fato trivial e cotidiano.
Talvez a tremenda impressão que tive lendo-o se deva a que, ao contrário de Theodor Kallifatides, não há na minha vida o que há na sua, essa aldeia, Molaoi, perdida nas entranhas do Peloponeso, onde tudo começou, o lugar de onde partem suas lembranças. Eu não sei onde começam as minhas. Certamente não em Arequipa, onde nasci, porque minha mãe e meus avós me tiraram de lá quando tinha apenas um ano, antes do início das minhas recordações. Estas foram de Cochabamba, mas no casarão da rua Ladislao Cabrera, lá na Bolívia, todas as memórias da minha família bíblica eram de Arequipa, e eu as herdei sem tê-las vivido. Em Cochabamba aprendi a ler, o melhor que me aconteceu, mas creio que só comecei a viver de verdade em Piura, que desapareceu sob uma modernidade que enterrou essa pequena cidade rodeada de areais, onde os burrinhos eram chamados de “piajenos” e as crianças, de “churres”, e onde aprendi que as cegonhas não traziam os bebês de Paris. Fui morar em Lima aos onze anos, e muitos anos se passaram antes que deixasse de detestar essa cidade que me distanciou de meus avós e meus tios.
Sempre pensei que ser um cidadão do mundo era o melhor que podia acontecer a uma pessoa, e continuo pensando assim. Que as fronteiras são a fonte dos piores preconceitos, que elas criam inimizades entre os povos e provocam as estúpidas guerras. E que, por isso, é preciso tentar afiná-las pouco a pouco, até que desapareçam totalmente. Isso está ocorrendo, sem dúvida, e essa é uma das boas coisas da globalização, embora haja também algumas ruins, como o aumento, até extremos vertiginosos, da desigualdade econômica entre as pessoas.
Mas é verdade que a língua primeira, aquela em que você aprende a dar nome à família e às coisas deste mundo, é uma verdadeira pátria, que depois, com a azáfama da vida moderna, às vezes vai se perdendo, confundindo-se com outras, e isso é provavelmente a prova mais difícil que os imigrantes têm de enfrentar, essa maré humana que cresce a cada dia, à medida que se amplia o abismo entre os países prósperos e os miseráveis, a de aprender a viver em outra língua, isto é, em outra maneira de entender o mundo e expressar a experiência, as crenças, as pequenas e grandes circunstâncias da vida cotidiana.
Theodor Kallifatides conta tudo isso como se fosse fácil, como se tal reconstrução linguística fosse alcançada de uma maneira natural, e não significasse algo dificílimo de conseguir, algo que está fora do alcance de uma enorme maioria de imigrantes, que jamais conseguem se integrar no seu novo país como ele conseguiu. Mas ele também conta como, ainda nos casos mais bem-sucedidos, como o seu, persiste sempre, sepultada possivelmente no recôndito mais profundo e secreto da personalidade, aquela raiz, aquele ponto de partida feito de paisagem, memória, língua, família, que, de repente, torna-se exigência peremptória, uma nostalgia que exige suas prerrogativas. Eu me lembro, em minha juventude em Miraflores, de um velhinho polonês que vendia peles e havia sobrevivido aos campos de extermínio nazistas. Dizia detestar a Polônia porque, segundo ele, os poloneses haviam cruzado os braços quando aquilo ocorria, mas, sempre que conversávamos, ele voltava à Polônia, à sua família, ao vilarejo onde passara a infância, à cidade onde seu pai e seu avô também tinham comercializado peles. Às vezes seus olhos marejavam recordando essa terra que dizia detestar.
Desde que o nacionalismo não erga sua horrível cabeça, não é ruim que uma pessoa tenha saudade da língua que perdeu, das cidades ou bairros das brincadeiras infantis, do colégio onde estudou e dos ritos familiares entre os quais cresceu. Esse é um sentimento saudável, cálido, necessário, e assim nos mostra Otra Vida por Vivir, um livro sem pretensões que é, no entanto, profundamente otimista e humano, pois descreve outra cara da imigração e apresenta o amor ao que nos é próprio sem uma gota de patriotismo em excesso nem sentimentalismo.
terça-feira, agosto 20
Cada livraria é única
Não existe uma livraria igual a outra. É por isso que nenhuma pode fechar. Cada livraria é única, tem uma personalidade.
(...)É por causa das livrarias que os leitores descobrem que querem determinados livros. O barato da livraria é criar demanda, inventar a necessidade de livros que o leitor jamais imaginou precisar. Por isso, quanto mais livrarias, e mais diversificadas, cada uma com seu sotaque, melhorRui Campos, dono da Livraria da Travessa
Urubu-rei
Leander Engstrom |
Foi assim que ele me ficou na lembrança, pessoa real em todo o esplendor da majestade, desde a primeira vez que o vi, quando menina, no museu Goeldi, do Pará. Tinham-no posto sem companheiros, ocupando um grande viveiro de tela grossa; sempre se mostrava pousado num velho tronco morto (ou talvez imitação de tronco feita em cimento) como se desdenhasse o chão, como se a simples ideia de chão fosse um insulto à força impotente das suas asas cativas. E como eu começava a aprender história do Brasil e andava muito enternecida com o triste fado do senhor dom Pedro II, associei uma figura à outra, igualmente comovida com a sorte daquele outro monarca solitário, desterrado também, se acabando fora do seu reino carregado a terras estranhas, – a própria imagem da realeza, abatida mas sempre digna. E foi então que estranhei pela primeira vez ave tão bela, solene, triste e nobre, carregar consigo o grotesco nome de urubu.
Passei depois muitos anos sem ver um urubu-rei – quando agora dei com outro, no jardim zoológico da Quinta da Boa Vista. Primeiro vimos o nome na placa, no meio dos vários abutres, e logo saímos à procura da ave real, correndo a vista pelos galhos mais altos das árvores supostas do viveiro. Mas sua majestade não pousava acima do chão. Sua majestade fora flagrada num flagrante de intimidade, sua majestade comia a sua ração de carne do almoço – e andava.
Como se desmoronam, Senhor, com algumas simples passadas, a legenda e a majestade de um rei! Sua majestade andava – qual, sua majestade gingava, arrastava os pés, balançava os ombros, como se ameaçasse dar rasteiras num terreiro – no famoso passo do urubu malandro. Imagina! Luís XIV, com manto de arminho e chapéu de pluma, atravessando um salão na cadência cafajeste de um bamba de gafieira – e tereis uma ideia do que eu vi então. Estava explicado por que a ave bela e nobre, de olhar terrível, irmã do condor e da águia chamava-se urubu. Podia ter plumagem de rei, podia ganhar o senhor dos Andes em esplendor e tamanho – mas o andar, reflexo da alma, era andar de urubu. E não só o andar dos pés, mas do corpo todo, o jeito canalha de entortar o pescoço, grelando a carniça, o arrastar da asa, a lentidão balouçante do gingado – tudo era só urubu, urubu catingueiro, urubu de quintal, urubu de monturo.
E com isso – dói dizê-lo, mas a verdade é que o senti mais aproximado de nós; perdi-lhe o medo. E se já não parecia animal heráldico, de maneira mais primitiva, mais de acordo com o nosso barbarismo – senti-o que era o nosso animal totem. Porque nos contrastes desse bicho estão representados os nossos contrastes, – a majestade e a rasteira, o capoeira e o príncipe gigante dormindo em berço esplêndido, a morrer de fome, de amarelão e de tísica. A terra de Tiradentes comparecendo durante quinze anos ao beija-pé de Getúlio, Brasil Urubu-Rei, coroa de ouro na cabeça, pé descalço no tamanco, pátria nossa tão amada, benza-te Deus que bem precisas, e te livre da gaiola e te dê para voar o céu grande onde teus pés não te traiam, e só as asas poderosas te sustentem, te levantem, te carreguem para os caminhos da luz do sol.
Rachel de Queiroz
segunda-feira, agosto 19
O vassoureiro
Em um piano distante alguém estuda uma lição bem lenta, em notas graves. De muito longe, de outra esquina, vem também o som de um realejo. Conheço o velho que o toca, ele anda sempre pelo meu bairro; já fez o periquito tirar para mim um papelucho em que me são garantidos 93 anos de vida, muita riqueza, poder e felicidade.
Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e da felicidade um salário mínimo: tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo.
Chiquita, a pequenina jabota, passeia a casa inteira, erguendo com certa graça o casco pesado sobre as quatro patinhas tortas, e espichando e encolhendo o pescoço curioso, túmido e feio. Nunca diz nada, o que é pena, pois deve ter uma visão muito particular das coisas.
Agora não se ouve mais o realejo; o piano recomeça a tocar. Esses sons soltos e indecisos, teimosos e tristes, de uma lição elementar qualquer, tem uma grave monotonia. Deus sabe por que acordei hoje com tendência a filosofia de bairro; mas agora me ocorre que a vida de muita gente parece um pouco essa lição de piano. Nunca chega a formar a linha de uma certa melodia; começa a esboçar, com os pontos soltos de alguns sons, a curva de uma frase musical; mas logo se detém, e volta, e se perde numa incoerência monótona. Para quem a vive, essa vida deve ser penosa e triste como o esforço dessa jovem pianista de bairro, que talvez preferisse ir à praia, mas tem de ficar no piano. Na verdade eu é que estou pensando em ir à praia, eu é que estou preso a um teclado de máquina. Espero que esta crônica tão cansativa e enjoada para mim possa parecer ao leitor de longe como essa lição de piano me parece no meio da manhã clara: alguma coisa monótona e sem sentido, ou às vezes meio desentoada, mas suave.
Passa o vassoureiro. É grande, grosso e tem bigodes grossos como todos os de seu ofício. Aos cinquenta anos darei um bom vassoureiro de bairro. De todos os pregões, o seu é o mais fácil: "vassoura... vassoureiro..." e convém fazer a voz um tanto cava. Ele me parece digno, levando entrecruzadas sobre os ombros, numa composição equilibrada e sábia, tantas vassouras, espanadores e cestos. Seu andar é lento, sua voz é grave, sua presença torna a rua mais solene. É um homem útil.
Não ousaria dizer o mesmo de mim; mas, enfim, já cumpri meu dever, como o velho realejo e a mocinha do piano; vagamente acho que mereço ir à praia.
Ora, não preciso de tanto. Nem de tanta vida, nem de tanta coisa mais. Dinheiro apenas para não ter as aflições da pobreza; poder somente para mandar um pouco, pelo menos, em meu nariz; e da felicidade um salário mínimo: tristezas que possa aguentar, remorsos que não doam demais, renúncias que não façam de mim um velho amargo.
Joguei uma prata da janela, e o periquito do realejo me fez um ancião poderoso, feliz e rico. De rebarba me concedeu catorze filhos, tarefa e honra que me assustam um pouco. Mas os periquitos são muito exagerados, e o costume de ouvir o dia inteiro trechos de óperas não deve lhes fazer bem à cabeça. Os papagaios são mais objetivos e prudentes, e só se animam a afirmar uma coisa depois que a ouvem repetidas vezes.
Chiquita, a pequenina jabota, passeia a casa inteira, erguendo com certa graça o casco pesado sobre as quatro patinhas tortas, e espichando e encolhendo o pescoço curioso, túmido e feio. Nunca diz nada, o que é pena, pois deve ter uma visão muito particular das coisas.
Agora não se ouve mais o realejo; o piano recomeça a tocar. Esses sons soltos e indecisos, teimosos e tristes, de uma lição elementar qualquer, tem uma grave monotonia. Deus sabe por que acordei hoje com tendência a filosofia de bairro; mas agora me ocorre que a vida de muita gente parece um pouco essa lição de piano. Nunca chega a formar a linha de uma certa melodia; começa a esboçar, com os pontos soltos de alguns sons, a curva de uma frase musical; mas logo se detém, e volta, e se perde numa incoerência monótona. Para quem a vive, essa vida deve ser penosa e triste como o esforço dessa jovem pianista de bairro, que talvez preferisse ir à praia, mas tem de ficar no piano. Na verdade eu é que estou pensando em ir à praia, eu é que estou preso a um teclado de máquina. Espero que esta crônica tão cansativa e enjoada para mim possa parecer ao leitor de longe como essa lição de piano me parece no meio da manhã clara: alguma coisa monótona e sem sentido, ou às vezes meio desentoada, mas suave.
Passa o vassoureiro. É grande, grosso e tem bigodes grossos como todos os de seu ofício. Aos cinquenta anos darei um bom vassoureiro de bairro. De todos os pregões, o seu é o mais fácil: "vassoura... vassoureiro..." e convém fazer a voz um tanto cava. Ele me parece digno, levando entrecruzadas sobre os ombros, numa composição equilibrada e sábia, tantas vassouras, espanadores e cestos. Seu andar é lento, sua voz é grave, sua presença torna a rua mais solene. É um homem útil.
Não ousaria dizer o mesmo de mim; mas, enfim, já cumpri meu dever, como o velho realejo e a mocinha do piano; vagamente acho que mereço ir à praia.
Rubem Braga
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