Mário de Andrade na rede, 1921 (Lasar Segall) |
A frase vem ter comigo, de súbito, quando abro numa página qualquer a grossa edição (da responsabilidade do tradutor e pesquisador americano Richard Zenith), respondendo a uma inquietação que me ocupava no instante em que abri o livro. Isto acontece muito. Acaso ou magia, ou nem uma coisa nem outra; antes porque, como acreditava a minha avó, os livros nos escutam e dialogam conosco. Pode ser.
Voltando aos mistérios do tempo, parece-me óbvio que uma hora ou um mês não transcorrem à mesma velocidade para uma criança ou para um adulto. As crianças habitam um tempo muito mais dilatado do que o nosso. Sentimos saudades da infância porque é como se, crescendo, perdêssemos a eternidade. A primeira década das nossas vidas é mais longa do que as cinco seguintes. Lembro-me das férias grandes, quando eu tinha dez, onze, doze anos. Três meses duravam uma vida. Hoje, esfrego um olho e lá se foi um mês; bocejo e perdi quatro ou cinco. Um Natal amarra-se ao seguinte, como se acontecessem na mesma semana. Vejo-me ao espelho e encontro o rosto do meu pai. Porém, se acaso, numa gaveta, descubro uma fotografia antiga, logo me alegra a memória daquela tarde, e volto a ter a idade que tinha quando a imagem foi fixada.
Surpreende-me que existam pessoas sofrendo de tédio — que não é outra coisa senão uma aguda consciência da passagem das horas —, depois dos quarenta anos, quando o tempo se acelera irremediavelmente. Fernando Pessoa, contudo, padecia. No referido “Livro do desassossego” são inúmeras as ocasiões em que o seu protagonista se queixa de tédio. Tenta, inclusive elaborar uma filosofia do tédio: “poesia surda da alma aflorando aborrecida à janela que dá para a vida (…) Sou como o homem que vendeu a sombra, ou, antes, como a sombra do homem que a vendeu.” E conclui, por fim: “O tédio é a falta de uma mitologia. (…) Sim, o tédio é isso: a perda, pela alma, da sua capacidade de se iludir, a falta, no pensamento, da escada inexistente por onde ele sobe sólido à verdade.”
Eis o dilema: ou vivemos intensamente, morrendo em breves instantes, ainda que esses instantes ocupem um século; ou, como fez Fernando Pessoa, escolhemos o papel de observadores e um ofício compatível (o poeta português foi tradutor de correspondência comercial), e vamos morrendo de tédio, a cada hora, para não morrermos de vertigem em cem anos.
Quanto a mim, estou apostando numa terceira opção: guardar os últimos anos para ler e reler os livros todos que fui comprando ao longo da vida. Ler é uma outra forma de ampliar o tempo. Um bom livro é sempre uma máquina do tempo, não só por nos fazer viajar para outras eras e lugares, mas, sobretudo, pelo poder que tem de desacelerar as horas.
Uma rede confortável, uma brisa tropical, e uma boa biblioteca — é tudo o que preciso. Tenho a rede, tenho a biblioteca e confio que terei a brisa. Resta saber qual a altura certa para estender a rede.
José Eduardo Agualusa
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