Alireza Darvish |
De mim, a quem desconheço totalmente, falo de cadeira.
Um editor me pediu para escrever uma autobiografia, mas seria um livro de memória. Disse-lhe que não, alegando que era moço ainda para me tornar memorialista e velho demais para começar a escrever. Sim, amigos, nenhum de nós, cronistas, começou ainda a escrever. Escrevemos todos os dias, às vezes melhor todavia, mais das vezes cansadíssimos da obrigação inclemente de escrever todos os dias.
Hoje, por exemplo, estou escrevendo desde ontem, para merecer um fim de semana longe daqui e mais perto de mim mesmo. Uma rede, um cachimbo (minto, um cigarro), um ou outro mosquito, a mulher e, se esta deixar, uma cervejinha gelada. No braço de maré, em frente ao terraço, pula, de vez em quando, um peixe grande. E,quando a noite é mais clara, a gente o vê, como uma coisa de prata, brilhando no ar. Eu digo o de sempre, com o espanto mental que trouxe do Recife:<
– Você viu o peixe?
E completo, fazendo o tamanho com as mãos:
– Era dest'amanho.
A mulher, na rede ao lado, diz que viu, mas com um certo desgosto pela minha surpresa sem razão. Minha incabível perplexidade face a um acontecimento tão comum. Então, eu me recomponho, puxo uma conversa, possivelmente interessante, até que ela se esqueça da minha atitude cretina, porque mais um peixe pulou, simplesmente. Fica tudo em paz e conversamos sobre os poetas melhores, desde Camões. Os da língua portuguesa, apenas, porque daí a pouco, salta outro peixe e eu não me contenho:
– Você viu o peixe? dest'amanho.
O marido tem certos deveres de parvoíce, de cretinice até, para com sua esposa. Porque só existe maldade, onde há, ao menos, um toque de besteira. Já a visita, não. O homem, mesmo sendo marido, quando está em visita tem obrigação de ser brilhante.
Bebo mais cerveja, gozo a delícia de mais um mosquito nas imediações do tornozelo (os mosquitos preferem as partes pálidas do ser humano), converso sobre Jacqueline Kennedy e, quando começo a atingir o nível intelectual da minha amada, eis que pula outro peixe... Assim, não é possível. Um homem assim não devia ter saído pelo mundo, à procura de Deus e Amor. Poderia ter ficado em sua casinha do Recife, dizendo suas besteiras, mas em casa de sua mãe. Mãe e irmãos são parentes. Mas mulher só vira parente e só tem obrigação de aguentar os espantos cretiníssimos do marido após as bodas de prata. Reconheço que tenho longos momentos de lucidez, mas sempre interrompidos por exclamações da maior besteira.
...Desculpe, leitor, eu ter falado, mais uma vez, de mim. É que escrevo muito direitinho quando descrevo o néscio intermitente que existe dentro deste homem. Um pobre homem do Recife.
N. do C. – Dedico esta crônica a Dorival Caymmi que, na realidade, nunca viu um peixe.
Antônio Maria
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