Todo dia tem sua hora clandestina, dessas que roubamos à transparência e à claridade. Momentos em que a mente vagamundeia, passando a fronteira das nossas horas cheias de propósito. Por fora a fuga quase não se nota (não nos traíssem, quase sempre, os olhos). Estamos aqui e não estamos. Estamos aqui e em outra parte. As circunstâncias mais banais fazem a ponte. Poder ser, por exemplo, o tempo de um café, o tempo de um banho, ou picando tomates. Aproveitamos o oportuno da hora e soltamos os gatos dos nossos pressentimentos, dos nossos desejos cegos, das nossas saudades. Vamos com eles errando por aí, errando com gosto de errar. Monologamos, cantamos baixo, rimos sem razão aparente, fechamos a cara, também sem razão aparente, como que transtornados. Sobrerrondamos ontens e amanhãs. Lembramos de alguém e essa lembrança não necessariamente nos comove, às vezes apenas passa por nós, como que se vingando do nosso desprezo, assim, por se fazer lembrar. Deixada à própria sorte, a mente é esse gato sem raça definida, meio de casa, meio das ruas, em ziguezague pelos telhados, sobre os muros, por caminhos que vão riscando o ar num louco emaranhado invisível, e pode até calhar que um gato passeie com outros gatos, e eles se enrosquem, e troquem cheiros e carinhos telepáticos, enquanto seus respectivos donos, em suas respectivas casas, parecem agir normalmente, três colheres cheias de pó de café no coador, o vapor quente da água nublando o banheiro, e aqueles olhos vidrados, mirando nada, de tão longe.
Mariana Ianelli
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