quinta-feira, outubro 31
A antiga dama
Morava numa pensão da rua São Clemente. Era volumosa, e cheirava a quando a galinha vem meio crua para a mesa. Tinha cinco dentes e a boca seca, árida.
Sua reputação passada não fora inventada: ainda falava francês com quem tivesse oportunidade, mesmo que a pessoa também falasse português e preferisse não corar com a própria pronúncia. A ausência de saliva tirava-lhe qualquer volubilidade da voz, dava-lhe uma contenção. Havia majestade e soberania naquele grande volume sustentado por pés minúsculos, na potência dos cinco dentes, nos cabelos ralos que, escapando do coque magro, esvoaçavam à menor brisa.
Mas houve a segunda-feira de manhã em que ela, em vez de sair de seu minúsculo quarto, veio da rua. Estava lisa e com o pescoço claro, sem nenhum cheiro de galinha. Disse que passara o domingo na casa do filho, onde pernoitara. Estava de vestido preto de um cetim já fosco. Em vez de ir para o quarto mudar de roupa, vestir um de seus vestidos de algodão barato, e ser apenas uma pessoa sozinha que mora numa pensão, sentou-se na sala de visitas, prolongando o domingo, e disse que a família era a base da sociedade. A propósito de qualquer coisa, referiu-se de passagem a um banho de imersão que tomara na confortável banheira da nora – o que explicava a sua falta de cheiro e o pescoço não encardido. Deixando sem jeito os pensionistas ainda de pijama e robe, ficou sentada horas junto ao jarro da sala, só tendo conversas adequadas a um suposto salão invisível.
De tarde, via-se que os sapatos abotinados já lhe apertavam demais os pés. Continuou, porém, de dama na sala de visitas, levantada a grande cabeça de profeta.
Mas, na hora em que elogiou o jantar magnífico da casa do filho, seus olhos se fecharam de náusea. Depressa foi para o banheiro, ouviram-na vomitar, recusou ajuda quando lhe bateram à porta do quartinho.
Na hora do jantar, apareceu e pediu apenas uma xícara de chá: estava de olheiras marrons, com o largo vestido de estampadinho de ramagem, e de novo sem cinta e sutiã. O que ainda restara de estranho era a pele mais clara. Alguns pensionistas evitaram olhá-la e à sua derrota. Não falou com ninguém. O rei Lear. Estava quieta, grande, despenteada, limpa. Fora feliz inutilmente.
quarta-feira, outubro 30
Mario e Manoel
No escritório de poesia Quintana & Barros, quando depois do almoço os sócios tiravam meia hora para um cochilo, era como se dois passarinhos cantassem para ninar o silêncioRaul Drewnick
A virgindade das palavras
Os governos mais sábios deveriam contratar os poetas para o trabalho de restituir a virgindade a certas palavras ou expressões, que estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichés. Só os poetas podem salvar o idioma da esclerose. Além disso a poesia tem a função de pregar a prática da infância entre os homens.
Se for para tirar gosto poético vai bem perverter a linguagem. Não bastam as licenças poéticas, é preciso ir até às licenciosidades. Temos de molecar o idioma para que ele não morra de clichés. Subverter a sintaxe até à castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto virgem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado.
O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injectar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. Há que se encontrar a primeira vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas isso é tão antigo como menino mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira.
Se você prende uma água, ela escapará pelas frinchas. Se você tirar de um ser a liberdade, ele escapará por metáforas. No internato, longe de casa, eu não sabia o que fazer e fiz um aparelho de ser inútil. E comecei a brincar com ele. Um padre disse: - Não presta para nada; há-de ser poeta!
Manoel de Barros
Se for para tirar gosto poético vai bem perverter a linguagem. Não bastam as licenças poéticas, é preciso ir até às licenciosidades. Temos de molecar o idioma para que ele não morra de clichés. Subverter a sintaxe até à castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto virgem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado.
O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injectar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. Há que se encontrar a primeira vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas isso é tão antigo como menino mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira.
Se você prende uma água, ela escapará pelas frinchas. Se você tirar de um ser a liberdade, ele escapará por metáforas. No internato, longe de casa, eu não sabia o que fazer e fiz um aparelho de ser inútil. E comecei a brincar com ele. Um padre disse: - Não presta para nada; há-de ser poeta!
Manoel de Barros
terça-feira, outubro 29
Os livros de Smith
O jornal britânico The Guardian é um manancial de informação cultural e, há mais ou menos duas semanas, publicou as respostas a um questionário que dirige regularmente a escritores conhecidos, desta feita dadas por Patti Smith, escritora e cantora de gabarito internacional (não há muito esteve cá em Lisboa para um concerto que, evidentemente, esgotou assim que os bilhetes foram postos à venda). As perguntas (como no famoso Questionário de Proust) costumam ser as mesmas para qualquer escritor, mas, como é normal, as respostas variam bastante. Neste caso, são até surpreendentes: Patti Smith diz, por exemplo, que o livro que gostaria de ter escrito era Pinóquio; que a obra que a fez querer ser escritora foi Mulherzinhas (em especial a personagem Jo March); que o livro que mais influenciou a sua escrita foi Diário de Um Ladrão, de Jean Genet; e que ficou com tanta ansiedade enquanto lia O Príncipe e o Pobre, de Mark Twain, que até vomitou. Chorou com Charlotte Brontë e riu com César Aira; e envergonha-se de nunca ter lido O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. A sua cabeça foi virada do avesso por O Jogo das Contas de Vidro, de Hermann Hesse. Há mais, claro, mas o melhor é ir lá conferir (Leia).
* Índice com mais entrevistas em The Guardian
segunda-feira, outubro 28
A pleno pulmões
Quando eu escrevia crônicas, parecia um político em campanha. Cumprimentava os postes do meu bairro, conversava com as árvores, assobiava para os cachorros. É o que há de melhor em ser cronista: essa camaradagem com tudo, essa impressão de que nem sempre a literatura precisa ser a tia que, para não manchar a pele, evita expor-se ao solRaul Drewnick
Asim começa o livro...
Só o pequeno Nimi, de tanto ouvir o falatório da professora Emanuela, começou a ter sonhos com animais à noite. A turma ria dele quando chegava contando, logo pela manhã, como seus sapatos marrons que durante a noite ficam ao lado da cama dele se transformavam em dois ouriços que se arrastavam e examinavam o quarto a noite inteira, mas de manhã, quando ele abria os olhos, os ouriços voltavam de repente a ser um simples par de sapatos ao lado da cama. Numa outra vez, morcegos negros vieram à meia-noite, levaram-no sobre as asas e voaram com ele através das paredes da casa pelo céu da aldeia e por sobre os montes e os bosques, até que o conduziram a um palácio encantado.
Nimi era um menino um pouco descuidado, e andava quase sempre com o nariz escorrendo. Além disso, entre os salientes dentes da frente havia um belo intervalo. As crianças chamavam esse espaço de poço de lixo.
Maia, a filha de Lília, a padeira, que sentava atrás dele na sala, cochichava algumas vezes: Nimi. Escuta. Você pode sonhar com o que quiser, com animais, com meninas, mas fique quieto. Não conte. Não vale a pena.
Mati dizia a Maia, você não entende, Nimi sonha só para contar os sonhos. E geralmente os sonhos dele não se interrompem nem quando ele acorda pela manhã.
Tudo divertia Nimi e tudo despertava nele alegria: a xícara rachada da cozinha e a lua cheia no céu, o colar da professora Emanuela e seus próprios dentes salientes, os botões que esqueceu de abotoar e o rugido dos ventos no bosque, tudo o que existe e acontece parecia engraçado a Nimi. Em todas as coisas via um motivo suficiente para se arrebentar de rir.
Até que uma vez ele fugiu da sala de aula e da aldeia, e entrou sozinho no bosque. Durante dois ou três dias, procuraram-no quase todos os aldeões. Por mais uma semana ou dez dias, procuraram-no os guardas. Depois, apenas seus pais e a irmã continuaram a procurar por ele.
Passadas três semanas ele voltou, magro e imundo, todo arranhado e machucado, mas relinchando de tanto entusiasmo e alegria. E desde então o pequeno Nimi não parou mais de relinchar e tampouco tornou a falar: não pronunciou nenhuma palavra desde que voltou do bosque, e só ficava circulando descalço e esfarrapado pelas ruelas da aldeia, o nariz escorrendo, mostrando os dentes e o intervalo entre eles, se metendo entre os pátios de trás, subindo nas árvores e postes, relinchando o tempo todo, com o olho direito lacrimejando sem parar por causa da sua alergia.
Era totalmente impossível voltar a frequentar a escola por causa da "doença do relincho". As crianças, quando saíam da aula, provocavam-no intencionalmente, para que ele relinchasse. Eles o chamavam de Nimi, o potro. O médico esperava que isso fosse passar com o tempo: talvez ali, no bosque, ele tivesse se deparado com alguma coisa que o assustou ou abalou, e por enquanto está com a doença do relincho.
Maia dizia a Mati: será que eu e você deveríamos fazer alguma coisa? Como podemos ajudá-lo? E Mati respondia: deixa pra lá, Maia. Daqui a pouco eles vão se cansar disso. Daqui a pouco eles vão esquecê-lo.
Quando as crianças lhe davam um chega-pra-lá com zombarias, e atiravam pinhas e cascas sobre ele, o pequeno Nimi corria, relinchando. Subia bem alto nos galhos da árvore mais próxima e de lá, em meio às ramagens, ele se voltava para eles relinchando, com um olho lacrimejando e os dentes da frente salientes. E às vezes, até no meio da noite alta, parecia que se ouvia ao longe o eco de seu relincho no escuro.
domingo, outubro 27
Divagações vespertinas da condessa
A condessa e eu estávamos no jardim. Era uma dessas tardes em que o vento morno assedia as flores soprando-lhes obscenidades. À distância que me impunha minha condição de servo, eu, sentado numa ponta de banco, observava a condessa, que, na outra extremidade, como se estivesse com um bloco e uma caneta nas mãos, murmurava palavras, parecendo organizar uma agenda: às três, as unhas; às quatro, o cabelo; agora... Ela interrompeu a frase e suspirou, como se o vento lhe houvesse sugerido alguma coisa. Eu virei o rosto escandalosamente para ela e suspirei também, com segundas e terceiras intenções. Ela abriu para mim o melhor dos seus sorrisos irônicos e completou a frase: ... agora uma boa soneca. E, formando com o indicador uma negação: ... sozinha. Os homens são todos uns bodes. Os condes e os lacaios.
sábado, outubro 26
Bela, Carmela e Fiorela
— Ma perchè?
O tal sujeito, que se dizia comunista trotskista, aproveitou-se:
— Ah! Estamos numa guerra, numa luta de classes. O senhor é italiano; italiano é fascista. Logo, o senhor é inimigo do povo.
Meu bisavô soltou um palavrão e foi se instruir sobre o que ouvira. Da nacionalidade não tinha dúvidas; chegara a Santos no vapor “Espagne” com outras famílias oriundas da Toscana fugindo da fome. Mas, “fascista”, só tinha ouvido falar. Remexeu jornais antigos, folheou livros e trocou ideias com o vigário da paróquia de Santa Efigênia. Daí, concluiu: não era fascista; achava Mussolini um falastrão. Detestava política e políticos; amava os vinhos, a ópera, a música, Dante Alighieri e as morenas brasileiras.
Correu os olhos pela propriedade e fez um rápido inventário. A casa era modesta, porém digna e sempre bem arrumada. No fundo havia o quintal, sem cercas, confundindo-se com a paisagem bucólica da Serra. Foi de lá que ouviu o berro familiar da Carmela:
—Bééééé!
Aí seu coração apertou. Carmela era uma das três cabras que habitavam seus domínios e o abasteciam de leite para o queijo de sabor forte – um dos poucos luxos que mantinha. As outras eram Bela e Fiorela, três nomes italianos inspirados no som “é” prolongado, imitando o berro dos bichos. Bastava que meu bisavô gritasse “Béééla, Carméééla, Fioréééla!” para que as cabras viessem correndo, balançando os sinos dos pescoços.
Por perto também andava Benedito, um robusto bode nacional e senhor exclusivo do harém, desfrutando da miscigenação das raças sem preconceitos. Meu bisavô acariciou o pelo macio da cabrita e decidiu-se: ali ninguém entraria nem tocaria nos seus animais.
Segundo cochichavam, a invasão e o saque das casas das famílias italianas e alemãs seria no Sete de Setembro, data simbólica. Nesse dia, meu bisavô levantou-se cedo, ordenhou suas cabras e, ao invés de soltá-las como de costume, fechou-as no curral. Em seguida, tomou banho, aparou a barba grisalha, perfumou-se. Daí, vestiu seu terno branco de linho e caprichou no laço da gravata de seda. Foi à cozinha e arrastou uma das cadeiras pesadas até o portão de ferro da rua Pouso Alto. Assentou-se com a bengala ao colo, escoltado por Benedito, única companhia que se permitiu, já que a situação era pra machos.
— Daqui não passam, Benedetto – disse ao bode. E plantou-se na calçada, impassível, até à noite.
O nacionalismo exacerbado e beligerante felizmente ficou restrito ao desfile militar e, afinal, ninguém perturbou meu bisavô e suas cabras. De resto, não demorou até que a guerra acabasse na Europa; todos comemoraram com foguetes, cerveja e abraços patrióticos.
Alguns anos depois corri de pés descalços pelas mesmas trilhas de Bela, Carmela e Fiorela, apanhando goiabas e nadando nos córregos da Serra. Meus companheiros tinham sobrenomes esquisitos: Wilke, Scotti, Mattar, Shimba, Jeolás, Grisi, Brant, Polizzi. Era uma nova geração de brasileiros que subia o morro para jogar futebol com os meninos das favelas do Pendura Saia e do Pau Comeu. De coração aberto, sem medo, tínhamos nossa própria ideologia e não nos importavam território, raça, cor ou religião. Ninguém era nada. Éramos só amigos.
Folhas, flores e frutos
Uma vez, passando umas férias em Belo Horizonte, tomei um bonde, cujo percurso me era desconhecido. Ia olhando os bangalôs de um bairro novo, quando de repente, em sobressalto, disse em voz alta: É ela!
Minhas andanças em noites de devastação adolescente estão para sempre associadas aos pequenos frutos dos ficus da avenida Afonso Pena, friamente cassados por um prefeito. E a um fruto inchado e fibroso que esborrachava nas madrugadas mornas, quando subia a avenida João Pinheiro.
Na casa do médico Paulo Rosa, defendida de cacos de vidro, morava a jabuticabeira mais redonda e mais bonita de toda a cidade: parecia uma baiana florida. Caco de vidro não quer dizer nada quando se tem dez anos. Em um quintal da rua Professor Morais, descobrimos parreiras carregadas, quando a uva era um luxo importado.
Não morri como ladrão um pouco por sorte e um pouco porque tinha pernas finas e ligeiras. Saqueamos os frutos mais variados em todos os bairros: Funcionários, Santo Antônio, Santa Efigênia, Lourdes... todos. Roubei na rua Pernambuco, na rua Fernandes Tourinho, na avenida Bias Fortes, na rua dos Inconfidentes, na Prefeitura e até no Palácio da Liberdade. Vitaminas não me faltaram quando criança, manga, coco, banana, jabuticaba, romã, ameixa, pêssego, amora, goiaba... o que existisse.
Belo Horizonte era uma cidade vegetal, um jardim de flores e frutos; e é verde e perfumada quando percorro antes de dormir aquelas ruas compridas e os jardins pasmados pelas rosas.
Boyoun Kim |
E era ela mesmo, sem tirar nem pôr, uma árvore, uma alta e robusta paineira que conheci quando menino. A cidade se estendera até o limite extremo do meu mundo, a minha selva. Desci do bonde e não perguntei à minha amiga de infância o que acontecera às companheiras, já sabia: progresso no Brasil é matar as árvores para plantar uma roça ou uma casa. Essa civilização às avessas, antivegetal, do campo faz o deserto, e da cidade tropical faz o purgatório. O Rio, por exemplo, o Rio é uma cidade que tem horror à chuva - assim como o resto do mundo tem horror bomba atômica - porque foram dizimados os "grandes arvoredos" de que falam os cronistas do primeiro século.
É uma facécia nossa dizer que ninguém pode destruir o Rio. Mentira, pode-se sim, acabarão destruindo - e sem que se apure a responsabilidade, dissolvida na enchente de lama e tempo.
Mas estou um pouco cheio do Rio e volto à paineira. Belo Horizonte é para mim uma cidade de muitas árvores que se foram. No início da avenida Paraúna, no chão vermelho de pó, havia um espinheiro que dava sombra a dois namorados. Na rua de Lavras me lambuzava de jalão. Perto do Ipiranga Futebol Clube me abastecia de favas, moeda corrente no grupo escolar. No Parque Municipal amava mais do que todas as outras plantas um pé de jenipapo. Depois de comer as frutas, brincava de marinheiro em mastro de navio, nas ramagens mais altas do cajueiro da rua Alagoas. Os pinheiros da caixa d'água da Serra existem ainda, pelo menos alguns. Convivi com uma linda mangueira em toda a sua intimidade, a resistência, as distâncias, as reentrâncias de cada galho. Não poucas tardes da minha infância passei acastelado na copa dessa árvore amiga, hoje morta.
Minhas andanças em noites de devastação adolescente estão para sempre associadas aos pequenos frutos dos ficus da avenida Afonso Pena, friamente cassados por um prefeito. E a um fruto inchado e fibroso que esborrachava nas madrugadas mornas, quando subia a avenida João Pinheiro.
Na casa do médico Paulo Rosa, defendida de cacos de vidro, morava a jabuticabeira mais redonda e mais bonita de toda a cidade: parecia uma baiana florida. Caco de vidro não quer dizer nada quando se tem dez anos. Em um quintal da rua Professor Morais, descobrimos parreiras carregadas, quando a uva era um luxo importado.
Não morri como ladrão um pouco por sorte e um pouco porque tinha pernas finas e ligeiras. Saqueamos os frutos mais variados em todos os bairros: Funcionários, Santo Antônio, Santa Efigênia, Lourdes... todos. Roubei na rua Pernambuco, na rua Fernandes Tourinho, na avenida Bias Fortes, na rua dos Inconfidentes, na Prefeitura e até no Palácio da Liberdade. Vitaminas não me faltaram quando criança, manga, coco, banana, jabuticaba, romã, ameixa, pêssego, amora, goiaba... o que existisse.
Belo Horizonte era uma cidade vegetal, um jardim de flores e frutos; e é verde e perfumada quando percorro antes de dormir aquelas ruas compridas e os jardins pasmados pelas rosas.
sexta-feira, outubro 25
Nossa rica virtude
Não sei se você é do tempo em que um pobre passava na porta de sua casa e, bem-educado, tocava a campainha. Você, ou alguém por você, atendia. Com uma lata na mão, o pobre pedia um resto de comida, pelo amor de Deus. Você dava ou não dava, segundo tivesse comida e disposição. Se dava, punha na lata o sobejo do dia. O pobre, reverente, lhe agradecia. E louvava o seu bom coração. Deus lhe pague e lhe dê em dobro. Amém, dizia você.
Era um rito civilizado. A gente até conhecia o pobre de vista e de nome. Freguês pontual, procurava não incomodar. Passava entre uma refeição e outra. Se eram dois ou três, tratavam de se entender entre eles. O pobre vinha uniformizado de pobre. Tinha cara de pobre, cabelo de pobre, barba de pobre. Olhar de pobre. Uns olhos humildes que se voltavam para baixo. Um leve brilho só lhe era permitido quando pronunciava o santo nome de Deus.
As crianças da casa conheciam cada um dos que estendiam a mão à caridade pública. Ou familiar. Um ou outro pobre era meio tantã. Engrolava palavras, podia cheirar mal e vestir andrajos que desconheciam água e sabão. Um tipo assim aceitava roupa velha. Daí a uns dias voltava nos trinques. Melhorava o visual. Às crianças se recomendava cuidado. Caridade, sim. Mas nada de intimidade. O pobre podia estar doente. A pobreza em si não era contagiosa, ao contrário da riqueza. Mas doença de pobre era um horror.
Quando o pobre não trazia a sua própria lata, um desmazelo, a família dispunha de uma vasilha para a emergência. Podia ser um prato rachado, ou de folha de flandres. Nem o cãozinho nem o gato podiam comer nessa vasilha. Bicho de estimação é delicado, pega doença à toa. Se o pobre tinha uma úlcera, ou um defeito físico evidente e feio, tinha o cuidado de não o exibir. Nunca ninguém lhe perguntava se doía. Doesse ou não, isso era lá com ele.
Era um tempo em que se respeitava a intimidade do pobre, mesmo sem estar garantida pela Constituição. As crianças bem-educadas não perguntavam por que o pobre era pobre. Nem por que não tinha casa pra morar. Ou comida pra comer. Curiosidade tinha limite. Se o pobre cheirasse a álcool, ai dele. Há de ver que lhe deram dinheiro. Perdia ponto e até a comida, se logo não se corrigisse. Vício, não, de forma nenhuma. Bem-comportado, o pobre abrilhantava o escrínio de nossas virtudes.
quinta-feira, outubro 24
A monstruosidade bíblica
Louis Waynai, de Los Angeles (EUA) imprimiu em 1930 um enorme exemplar da “Bíblia do rei James”. O projeto levou dois anos para ser finalizado, mais de 8.700 horas de trabalho. O volume, quando aberto, media 1,10 metro de altura e 2,5 metros de largura. Quando estava fechada, a lombada tinha 86 centímetros de grossura. O livro tinha 8.048 páginas e pesava 496 quilos
Vida
Do primeiro dia ao último, sempre essa ilusão, esse engano: você pensa que está vivendo – qual! – e todo o tempo você está morrendo. Ninguém vive, todo mundo apenas morre. Acontece somente que o processo de morrer é lento, e a esse acabar-se devagarinho é que os homens chamam de viver. Nasce um menino, por exemplo. Veio roxo e mudo, é um pequeno defunto maltratado. O médico faz as manipulações clássicas, cabeça para baixo, palmada, ar no pulmão – o menino solta um grito agudo e dilacerante e o pai sorri, deslumbrado: "Meu filho está vivendo, começou a viver!" Viver nada, seu idiota, seu filho começou foi a morrer. Sim, desde aquele primeiro instante. Porque vida é um processo negativo, enquanto a morte é que é o processo positivo. Viver é andar para trás, é ceder terreno, é assim como um perde-ganha. A gente faz a conta da idade; quantos anos já viveu? Para que essa conta, senão por um único motivo: para fazer o cálculo provável do quanto ainda nos resta, antes de morrer. A cada ano, a cada dia, a cada hora e minuto, você tem menos vida dentro de si: menos coração, menos veia, menos músculo, menos reserva de fonte de energia. Viver, para resumir, é usar-se. Lanterna de bolso, com a pilha que não se substitui. Acabou-se a pilha, acabou-se tudo, joga fora o casco inútil, que luz não sai mais dali.
E assim, portanto, não adianta ambição. Você trabalhando por um lado, a morte trabalhando pelo outro, são como duas cobras que se mordem pela cauda. Você se agitando, cuidando que está construindo, enquanto ela, silenciosa, rói sem parar, a estrutura interna, deixando apenas a ilusão da superestrutura: mas é oca, já não tem nada dentro. Você compra, vende, aprende alemão, constrói casa própria e faz ginástica. Tudo isso a serviço de quem se supõe vivo – pelo menos por um prazo; como se o relógio parasse para você gozar um momento a paisagem e o ar bom! Porém, na verdade, você desde o começo é um meio-morto, que aos poucos vai se entregando – todo dia um pedacinho, até a entrega definitiva.
E depois não adianta orgulho. Você ergue a voz, mas sabe por acaso com o que conta para apoiar a sua arrogância? Talvez na sua caixa do peito só reste um fole vazio. Seu passo é firme, agora, mas pode estar cambaleando dentro de dez minutos. Sabe, talvez você há anos esteja se mantendo de pé apenas por autossugestão.
E escute mais: nem o pudor adianta. Esse ciúme de si mesmo que muitos pensam que é virtude, essa valorização da carne viva, esse mistério, que nem aos olhos amantes se desvenda total, essa fração de corpo secreta e triste que todos escondemos até de nossa própria vista, talvez hoje, talvez daqui a pouco, seja tirada ao seu controle, entregue às mãos dos outros, exposta, manipulada, retratada. E aí, de que serviram tantos anos de recato? Para chegar a tal exibição?
E então para que todo o esforço? Para que glorificar o que é um simples processo de desgaste e enfeitá-lo com paixões, conquistas e esperanças? Se viver é a própria negação da vida, ou a sua destruição, para que sofrer e lutar, enfrentando esse duro caminho que não leva a lugar nenhum? É como nadar de terra para o mar alto. Adiante não há mais nada, só água funda, oceano. Terra não há, nem ilha, nem nova praia; só a água funda, comedeira. Então que loucura é essa de oferecer o peito à vaga, furar a rebentação, cortar a água com os braços? Por mais que se esforce o nadador, mais hora menos hora terá que parar, exausto, mergulhando de vez na onda amarga. Digam, digam para que deixar a praia, se há a certeza de que nada espera o nadador, nada, senão a asfixia final?
Rachel de Queiroz Jornal da Barra - 1987
quarta-feira, outubro 23
Leitura é um fermento
Ler me deu essa possibilidade de ser muitas coisas, de não ficar presa no meu corpo. Eu podia ser homem, monstro, fada, planta, alienígena, podia ser um monte de coisa. O meu mundo ficou muito maiorEliane Brum
A vida que ele levou: Harold Bloom (1930-2019)
Morto na última segunda-feira, aos 89 anos, o crítico não suportava a ideia de ver os gênios de seu panteão particular transformados em instrumento político-social. William Shakespeare, por exemplo. Por mais que Bloom, um judeu nascido no bairro nova-iorquino do Bronx, identificasse o flagrante antissemitismo presente em "O mercador de Veneza", nem por isso achava que a obra deveria sair dos programas das escolas e universidades. Ou, pior ainda, que deveria ser substituída por algum livro medíocre e inofensivo, que atendesse aos padrões politicamente corretos.
"Paris Review" em 1991. “Na maioria das vezes, Sigmund Freud apenas a codificava.” O que não significa, claro, que o médico austríaco também não fosse um escritor genial, na concepção do crítico.
Na contramão dos chamados estudos culturais, que se instalaram com força nas humanidades de seu país a partir dos anos 1960, Bloom dava muitas vezes a impressão de ser o último bastião da defesa do cânone ocidental. Em "Gênio", de 2002, por exemplo, listou “de forma arbitrária e idiossincrática” 100 exemplos de mentes criativas que se encaixariam em sua visão de escritor canônico. “Falstaff e Hamlet estão bem mais vivos do que muita gente que conheço”, escreveu ele no livro, em referência a dois personagens essenciais de Shakespeare.
Bloom tinha uma certeza inabalável — quase messiânica — de que o mundo pós-estruturalista errava ao se voltar para fora do cânone, por motivos nem sempre — segundo ele — estéticos. E, para os anticanonizadores que insistiam em relativizar o gênio “estanque” de autores como o grego Homero, o italiano Dante Alighieri, o espanhol Miguel de Cervantes, o português Luís de Camões ou o brasileiro Machado de Assis, revisando-os por contextos históricos e políticos, cunhou um termo ainda hoje difundido: a “Escola do Ressentimento”. Os tais “ressentidos” responderam que Bloom militava pelos privilegiados de sempre: homens brancos que tiveram a sorte de se encaixar nos valores de suas épocas. Bloom, porém, estava longe de ser uma figura odiada, mesmo entre os que se posicionavam do outro lado das trincheiras. Ele provocou, discutiu, atacou tendências, mas sempre colocando a paixão da leitura acima de tudo.
Bloom foi um professor admirado de ciências humanas em Yale, onde lecionou por mais de 50 anos. Capaz de devorar até 400 páginas em apenas uma hora e de recitar de cor todas as peças de Shakespeare, virou inclusive um caso raro, talvez único, de crítico que frequentou as listas de mais vendidos — por livros como "O cânone ocidental", que trouxe o conceito da “Escola do Ressentimento”, e "Como e por que ler", de 2000, que ajudou a formar muitos leitores. Como bem lembrou o obituário no jornal The New York Times, ele nunca se preocupou com o rótulo de “populista” que os best-sellers e a fama provocada pela exposição midiática lhe trouxeram.
Por aqui, sua morte foi lamentada em todos os campos, digamos, ideológicos da pesquisa literária. “Era o melhor crítico literário vivo do campo conservador”, tuitou a jornalista e crítica Juliana Cunha. “Desde a iniciação científica, pego ideias dele. Para usar do avesso, mas sempre peguei e continuarei pegando. Aqui vai um pesar sincero, diretamente da Escola do Ressentimento”, escreveu.Bolívar Torres
terça-feira, outubro 22
Tragédia concretista
- Ema. Amo. Amas?
- Como? – surpreendeu-se a jovem – Quem fala?
- Falo. Falas. Falemos.
A pequena, julgando-se vítima de um “trote”, ficou por conta e, como era muito bem-educada (essas meninas de hoje!), desligou violentamente, não antes de perpetrar, sem querer, um precioso “hai-kai” concretista:
- Basta, besta!
O poeta ficou fulminado. Não podia, não podia compreender. Sofreu, que também os concretistas sofrem; estava apaixonado, que também os concretistas se apaixonam, quando são jovens – e todo poeta concretista é jovem. Não tinha lábia. Não teria os lábios. Por que não viajar para a Líbia? Desaparecer, sumir… Sentia-se profundamente desgraçado, inútil. Um triste. Um traste.
O consolo possível era a poesia. Sentou e escreveu:
“Bela. Bola. Bala.”
O que, traduzindo em vulgar, vem a dar esta banalidade: “A minha bela, não me dá bola. Isto acaba em bala.”
Não acabou, naturalmente. Tomou uma bebedeira e tratou de arranjar outra namorada, a quem dedicou um soneto parnasiano. Foi a conta. Casaram-se e são muito falazes… Oh! Perdão: felizes.
Luís Martins
segunda-feira, outubro 21
Vinicius
Carlos C. Laínez |
Cedo descobri, numa antologia de 1967, da saudosa editora Sabiá, que minha mãe era uma das mulheres de Vinicius. O livro amaciado de muito manuseio também acabou passando por minhas mãos. Eu menina também me deitava num chão de morangos, também me chamava Maria, e era flor de melancolia, me chamava Ariana, uma amiga entre as amigas que se perdiam e achavam gosto em se perder. Quis ser também a onda que o poeta via, distante das praias, e das luas quis ser a que reflete na água, e ser o ventre novo no qual um pensamento de amor semeia sua continuidade.
Tudo o que Vinicius fazia com as palavras para encantar a namorada desconhecida me alcançava, seu ar trágico de tão apaixonado, seu confessar-se menino de alma delicada, sua tara pela beleza das mulheres meninas garças. Queria me fazer cada uma de suas palavras, ser mar de acolher suas âncoras de promessa, ser a face imaginada, vinda do futuro, a face da ausente, resto de nuvem, ave de tempestade. Que polícia, que tribunal dos bons costumes, que nada. Eu menina me deitava com Vinicius, ele o meu monstro de delicadeza, eu uma de suas amigas ignoradas.Mariana Ianelli
O desespero e a fábrica de histórias
De um momento para o outro, tinha à minha frente dois velhos a olharem para mim e para a minha irmã, mais alarmados do que felizes. Eram os nossos avós maternos que eu só conhecia das cartas que iam e vinham em papel e sobrescritos muito finos, by air, par avion, Para não pesarem durante o voo, explicava-me a minha mãe, e eu ficava a pensar em como é que palavras de nada podiam ter importância nas toneladas de aço do avião, feito um pássaro gigante com a barriga cheia de cartas. Espero que esta carta te vá encontrar de saúde que nós por cá todos bem, graças a Deus, era sempre assim que começavam as cartas da minha avó. A minha mãe lia-as a mim e à minha irmã, tentando traduzir para as nossas vidas modernas de colonos aqueloutras, longínquas, dos nossos familiares da Metrópole, O teu pai foi ver do gado à feira de Mirandela e à vinda teve um acidente com a égua, A maleita levou-nos os recos, A filha do Sr. Doutor ficou noiva de um engenheiro importante da Régua. E agora ali estavam, aqueles dois velhos a olharem para nós, e a minha mãe, Cumprimentem os vossos avós.
Por que é que os avós andam sempre de preto?, perguntei passados uns dias, e a resposta veio pronta, Por causa do Manelinho. O Manelinho, o único varão nascido naquela casa, morrera há mais de trinta anos com um vómito esverdeado na boca. Porta-te bem, obedece aos teus avós, ordenou a minha mãe poucas semanas depois, quando foi embora com a minha irmã, para Lisboa. O ano letivo ia começar e nas proximidades da Fontelonga não havia escola onde a minha irmã pudesse fazer o sétimo ano. Ficariam instaladas, por especial favor, em casa de familiares de amigos ou sabe deus onde, enquanto a minha mãe pediria ao IARN que nos ajudasse. O meu pai continuava em Luanda, resistindo a desacreditar que tudo ia ficar bem por lá.
Susa Monteiro |
O meu avô pouco falava comigo, afastava-se quando a minha avó queria saber como era a vida em África e eu me punha a inventar histórias, misturando o nosso quotidiano de Luanda com macacos, leões, tempestades épicas, árvores com as raízes viradas para o céu. O meu avô não gostava de histórias, gostava de bater na minha avó e nos animais.
Morreram ambos, ele primeiro, nos dois anos seguintes ao nosso regresso. É difícil acreditar que tinham então quase a minha idade atual. De nada lhes valeu a fé nas pagelas penduradas nas paredes a cada vinte centímetros, santos com coroas de espinhos, carne lancetada, pés cravados, peitos abertos e corações expostos, terrores que me cercavam de noite e que, misturados com os barulhos dos animais guardados no andar de baixo, me assombravam o sono e agravavam o medo que já tinha do escuro. Felizmente a luz acabava sempre por vencer e o dia lá vinha salvar-me dos pesadelos noturnos. Começavam então outros, menos difusos, como ter de despejar os penicos, ir buscar água à fonte nos cântaros de plástico azul, atiçar as brasas da lareira para cozer a vianda dos porcos cuja gordura me nauseava, ajudar a minha avó a fazer os curativos das feridas que o cancro lhe ia abrindo no peito. Para melhor me lamentar, socorria-me das comodidades da vida de Luanda, água corrente, banheira, candeeiros nas mesinhas de cabeceira, fogão a gás, frigorífico, e a minha avó desconfiada, Nunca vi tal, nem na casa do Doutor, para logo acrescentar, De qualquer maneira isso acabou. Tinha razão, a vida como eu a conhecia tinha acabado, agora era retornada, vestia-me com roupas desajustadas para o clima e os costumes de cá, e os miúdos juntavam-se em bando para dizerem o que ouviam aos seus pais, os retornados eram exploradores de pretos e deviam ir para a terra deles, os retornados queriam roubar empregos, os retornados drogavam-se, as retornadas eram todas umas vadias. Não me admirava que a maldade do mundo nascesse nas fragas desoladoras que cercavam a aldeia.
A minha mãe ligava todas as quartas-feiras. Muito tempo antes da hora marcada, eu já estava na taberna do Zé Tendeiro à espera que o telefone tocasse lá do cimo das várias listas telefónicas. Logo que atendia, a minha primeira pergunta era, Quando é que me vêm buscar?, e a minha mãe lá me explicava, envergonhada, as condições em que estavam a viver em Lisboa, Não tarda o pai vem de Luanda e tudo se resolverá.
O frio vinha vindo, um frio que eu não sabia possível. As ameixas amarelas acabaram, assim como os banhos no tanque de rega do Cabeço, e já nada me distraía da minha tristeza a não ser quando, antes de nos deitarmos, a minha avó, ajeitando os tições incandescentes com a tenaz de ferro, Fala-me de África, e eu inventava histórias mirabolantes. Percebi, então, que quanto mais era evidente ser mentira o que eu contava, mais a minha avó se deixava levar pelas minhas palavras. A minha avó foi a primeira leitora que tive, muitos anos antes de ter começado a escrever. Eu fui a minha segunda leitora. Se o meu corpo não podia distorcer a realidade em que eu estava, a minha cabeça, sim. De certeza que havia um tesouro escondido debaixo das escadas do fontanário, de certeza que o Matias, o velho corcunda que gostava de se sentar ao sol no adro, era um vilão foragido de um barco de piratas, de certeza que um dos animais que dormiam por baixo de mim era um príncipe embruxado e um dia eu seria capaz de quebrar o feitiço. As histórias não me libertavam da tristeza nem me amansavam o desespero, mas tornavam-nos outra coisa. E não precisavam de acabar. Foram as histórias que me salvaram. Por isso, sempre que me perguntam quando é que percebi que seria escritora, nunca hesito, Aos onze anos. Não foi bem uma escolha, tive de o ser.
sábado, outubro 19
Falando de livro
Estes versos que você lê eu não os fiz em meu jardim, voluptuosamente estendido o meu leito de repouso, como era de meu hábitoOvídio (43 a. C. / 17 a. C.)
Um milagre
A princípio achei estranho que alguém manifestasse gratidão à divindade num anúncio, mas talvez Nossa Senhora nem tenha lido, mas logo me convenci de que não tinha razão. Com certeza essa alma, justamente inquieta numa noite de apuros, teria andado melhor se houvesse produzido uma Salve-Rainha, por exemplo. Infelizmente nem todos os devotos são capazes de produzir Salve-Rainhas.
Mihail Sergeevich Pivovarov |
Imagino o que mulher padeceu. A metralhadora cantava na rua, o guarda da esquina tinha sido assassinado, ouviam-se gritos, apitos, correrias, buzinar de automóveis, e os vidros da janela avermelhavam-se com um clarão de incêndio. A infeliz acordou sobressaltada, tropeçou nos lençóis e bateu com a testa numa quina da mesa da cabeceira. Enrolando-se precipitadamente num roupão, foi fechar a janela, mas o ferrolho emperrou. A fuzilaria lá fora continuava intensa, as chamas do incêndio avivam-se. A pobre ficou um instante mexendo no ferrolho, ataratanda. Compreendeu vagamente o perigo e ouviu uma bala inexistente zunir-lhe perto da orelha. Arrastando-se, quase desmaiada, foi refugiar-se no banheiro. E aí pensou no marido (ou no filho), que se achava fora de casa, na Urca ou em lugar pior. Encostou-se à pia, esmorecida, medrosa da escuridão, tencionando vagamente formular um pedido e comprimir o botão do comutador. Incapaz de pedir qualquer coisa, arriou, caiu ajoelhada e escorou-se à banheira. Depois lembrou-se de Nossa Senhora. Passou ali uma parte da noite, tremendo. Comos os rumores externos diminuíssem, ergueu-se, voltou para o quarto, estabeleceu alguma ordem nas idéias confusas, endereçou à Virgem uma súplica bastante embrulhada.
Não dormiu, e de manhã viu no espelho uma cara envelhecida e amarela. O filho (ou marido) entrou em casa inteiro, e não foi incomodado pela polícia.
A alma torturada roncou um suspiro de alívio, molhou o jornal com lágrimas e começou a perceber que tinha aparecido ali uma espécie de milagre. Pequeno, é certo, bem inferior aos antigos, mas enfim digno de figurar entre os anúncios do jornal que ali estava amarrotado e molhado.
Realmente muitas pessoas que dormiam e não pensaram, portanto, em Nossa Senhora deixaram de morrer na madrugada horrível de 11 de maio. Essas não receberam nenhuma graça: com certeza escaparam por outros motivos.
Graciliano Ramos
sexta-feira, outubro 18
Falando de livro
Preferia ficar sem sapato ou seu camisa, do que prescindir dela (biblioteca). E continuo a gastar dinheiro com essa preciosa mercadoria, hoje cada vez mais caraAgripino Grieco
Matar o mar
Era noite, o gerador da aldeia tinha deixado de roncar. Dizer que estávamos numa igreja era excessivo. O local de culto era um lugar tão oculto que nenhum deus daria pela sua existência. A sala onde estávamos – a única que existia – era o lugar do velório. As paredes dançavam à luz de velas espalhadas nos cantos da sala. O enfermeiro deu um passo em frente e dirigiu-se à minha mãe.
Susa Monteiro |
A mãe encolheu os ombros. Estava tão magra, tão vazia de corpo que receávamos pela sua integridade sempre que encolhesse os ombros.
– Não sei o que dizer, doutor, há anos que não fazemos nada.
– Entenda-me bem, dona Florinda. Há mandamentos do céu, outros da terra, a senhora sabe bem a que me refiro. São nossos costumes, não estão escritos por escrito.
– Os mandamentos conheço, mas não sei se alguma vez cheguei a conhecer o Arnaldo.
– Viviam juntos há vinte anos.
– Sou esposa, doutor. O que posso saber do meu homem?
Já só duas velas sobreviviam. A minha mãe separava-se do próprio corpo e esvoaçava em irrequietas sombras. Tive medo que desaparecesse, engolida pela parede. O enfermeiro pediu que nos retirássemos para o exterior. Longe do defunto, talvez a minha mãe ganhasse coragem.
– Pense bem, dona Florinda. Uma grave ofensa o seu marido terá cometido. Fale à vontade, estou aqui como enfermeiro e como pastor. Esse seu Arnaldo... A senhora não suspeita de nada?
Florinda hesitou, costurando os dedos uns nos outros. A medo foi rebuscando nos singelos caprichos do marido um que possa ter sido mortal. Recordou, primeiro, como ele dormia sem tirar a roupa que usara durante o dia. Os que dormem de pijama não respeitam o que foram durante o dia. O pijama é uma farda para se esconderem de si mesmos. Era assim que falava Arnaldo.
O médico não pareceu convencido. Não podia ter sido essa a razão. Seria demasiado trivial para tão extraordinário falecimento.
– Pense bem, dona Florinda. Não me faça passar um vexame. O que vou emitir, no caso presente: uma incertidão de óbito?
– O meu filho, talvez ele saiba esclarecer. Faz uma semana que saíram juntos. Viajaram não sei para onde. Voltaram diferentes, não sei explicar.
– Arnaldo viajou? Pronto, já estou a ver o que aconteceu.
– Então, meu jovem, o que nos pode dizer?
Uma derradeira vela resistia. Depois dela, a escuridão reinaria sozinha. Por isso, me decidi a falar, apressado. Lembrei o dia em que partimos em segredo, eu e o meu velho, em direção ao litoral. O pai levava apenas a espingarda. Nem água, nem pão, nem catana. Apenas a arma. Vamos para lá. E prolongava a vogal: lááááá.
O senhor sabe, senhor enfermeiro, não se fala sobre o mar em nossa casa. Respeitávamos tanto a norma que nunca a palavra “mar” foi pronunciada. Somos do interior, temos os rios e os espíritos que neles moram.
No meio do caminho, o meu pai tombou, desamparado. Ajudei-o a levantar-se, reparei que as mãos ferviam. Tenho febre, disse ele, mas não te preocupes, é só no corpo. O que se passa, pai?, perguntei. Ele respondeu que sofria de uma doença que só tinha nome numa língua que não era a nossa. Não quero que ninguém mais saiba disso, declarou. E por que razão saímos para tão longe? Sou um elefante velho, respondeu. Não quero que me vejam definhar.
Dias depois, ao final do dia, escalámos uma duna de areia e, antes de chegar ao topo, o meu pai parou, os dentes rangendo, a arma empunhada nos braços trémulos. O que vai fazer, pai?, perguntei, quase em pranto. O mar tem asas, começou ele por dizer. Quando eu morrer, o mar vai voar sobre a nossa aldeia e o sol ficará uma pedra cega, sem tamanho. Ficarão a saber que morri. Mas o que vai fazer agora, pai?, voltei a perguntar. Fica aqui, filho. Não espreites para o lado de lá, aconteça o que acontecer, não olhes nunca o mar de frente.
Acabou de dizer isto e galgou, aos berros, o topo da duna. Afundando os pés na areia, desatou aos tiros. Disparava contra as ondas, contra as gaivotas, contra as nuvens. De repente, tombou desamparado. Gemeu e logo corrigiu os meus intentos: fica onde estás! Obedeci, recolhido nas traseiras da duna. Por um momento, escutei esse grande silêncio onde moram todas as vozes. Depois, vi os braços do meu velho ancorando-se na crista da duna. Arrastava-se como um bicho e, por um momento, temi que fosse verdade a lenda dos homens que emergem do mar sem pés, sem raça e cobertos de escamas. Ajudei-o a erguer-se e percebi que sangrava dos pés. Não tive coragem de olhar mas deixávamos atrás de nós um fundo rasto de sangue. Não olhes o sangue, advertiu-me. É como o mar, não se olha.
E caminhou de regresso à vila, apoiando-se mais e mais nos meus braços. E quando, por fim, entrámos no povoado ele corrigiu os meus passos: para casa, não, leva-me para a igreja. E foi aqui nesta sala, que ele foi morrendo. Sozinho, como foi o seu desejo. Aconteceu ontem à noite. Há horas que jaz naquela mesa. E ainda o carrego nos meus braços.
No fim das forças, o meu pai me apertou as mãos com o mesmo desespero com que antes apertara o gatilho da espingarda. Ajudei-o a que se erguesse e, por um instante, parecia que dançávamos, entrelaçados. Quis falar mas da boca saiu-lhe não sei se um suspiro ou se a voz de um desses pássaros marinhos. O enfermeiro assegura que o que dele se soltou não foi senão a lágrima que lhe decepou os pés. E dentro dessa lágrima, estava o mar inteiro.
Depois de escutar as minhas palavras, a mãe ergueu o rosto como nunca antes tinha feito, entrou na igreja e, com gesto decidido, descalçou o defunto. Com a mesma determinação, estendeu-me o par de sapatos, o único que o marido tivera em toda a sua vida. São teus, meu filho. Calcei-os, mesmo sabendo que me faltava tamanho para encher as solas. Arrastei-os pela estrada até chegarmos a casa. A minha mãe entrou para o seu quarto, mas eu fiquei sentado na varanda, horas a fio sem nunca tirar os sapatos. A manhã nasceu e vi o mar voando sobre a nossa aldeia. As asas do mar roçaram-me os pés e os velhos sapatos, como duas indolentes canoas, se foram afastando de mim. Para longe, tão longe, tão dentro de mim.
quinta-feira, outubro 17
A virgindade das palavras
Mar Azabal |
Se for para tirar gosto poético vai bem perverter a linguagem. Não bastam as licenças poéticas, é preciso ir até às licenciosidades. Temos de molecar o idioma para que ele não morra de clichés. Subverter a sintaxe até à castidade: isto quer dizer: até obter um texto casto. Um texto virgem que o tempo e o homem ainda não tenham espolegado.
O nosso paladar de ler anda com tédio. É preciso propor novos enlaces para as palavras. Injetar insanidade nos verbos para que transmitam aos nomes seus delírios. Há que se encontrar a primeira vez de uma frase para ser-se poeta nela. Mas isso é tão antigo como menino mijar na parede. Só que foi dito de outra maneira.
Se você prende uma água, ela escapará pelas frinchas. Se você tirar de um ser a liberdade, ele escapará por metáforas. No internato, longe de casa, eu não sabia o que fazer e fiz um aparelho de ser inútil. E comecei a brincar com ele. Um padre disse: - Não presta para nada; há-de ser poeta!
Manoel de Barros
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