domingo, outubro 6

Quarent'anos

Venho de um tempo em que os computadores nas escolas só funcionavam se soubéssemos códigos longuíssimos. Um tempo em que gêmeos eram uma ocorrência rara e o anonimato ainda era possível. Vi até hoje três eclipses lunares, um deles em São João Del-Rei. Tenho amigos que dão nome a bibliotecas. Alguns já comemoraram seus quarent’anos e não é sem uma discreta glória que ainda sorriem.

Venho de um tempo em que Hilda Hilst era ouro raro nas livrarias. Hilda Hilst, Orides Fontela, João Cabral, Jorge Amado, João Ubaldo, todos vivos. Um tempo em que a campanha nacional era pelo desarmamento. Tive de chegar a 2019 para saber o que significa terçadada, que, na ignorância do que seja, parece até coisa bonita, e é uma forma bizarra de violência pela qual um índio caiapó morreu outro dia.

Lembro de recortar e guardar todas as fotos que encontrava, nos jornais e nas revistas, do massacre das crianças de Beslan, fotos de mães e avós desesperadas, fotos dos meninos sobreviventes, magros e nus, de olhar pasmo. Lembro de uma mãozinha de bebê cor de ferrugem de sangue coagulado em que se enrolava um pequeno terço. Estava saindo de uma aula de jornalismo quando o primeiro avião atingiu uma das torres gêmeas e alguém falou no começo de uma Terceira Guerra. Lembro de ver numa manchete de jornal o teto bombardeado de um mercado na Síria que parecia um céu de estrelas se abrindo à luz do dia. Venho de um tempo em que as entrevistas de rádio com repórter em campo eram feitas pelo orelhão. Um tempo de orelhões, fitas-cassete e cartas entre amigas.

Meu sobrinho, que vi com a idade que agora tem minha filha, hoje é um mestrando que lê Nietzsche. Lembro de ver “Thelma e Louise” no cinema. Lembro da comoção geral quando morreu Tom Jobim. E de ver Charles Aznavour ir diminuindo de tamanho, ano após ano, se esfumaçando nos palcos, mas nunca morrendo. Eu devia ter a idade do menino Salvatore quando estreou “Cinema Paradiso”. Lembro de um longo ensaio de Susan Sontag, num jornal de domingo, com fotos dos prisioneiros torturados de Guantánamo.

São algumas coisas que me ocorrem neste quadragésimo outubro de vida. O luxo que é ter tempo, dias simples e, tanto quanto possível, um ritmo lento. A sorte que é não ter enlouquecido ainda, num país hoje tão propício à loucura. A sorte que é ter mãe por perto e gente amiga com seus lumes nas janelas, continuando. O desejo que dá de escrever um bilhete de amor inocentemente indecente, que dissesse: deixe-me ficar aqui, só mais um pouco, na sua mente. A alegria (a tal glória) discreta e muda, de ainda sentir esse desejo.
Mariana Ianelli

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