quarta-feira, outubro 9

Chama-me pelo meu nome

Ainda não acabei de tomar o pequeno-almoço e já o Clude chora junto à porta da rua, pedindo que o leve lá fora. Regressa várias vezes à cozinha em trajetos mais ou menos estouvados e o mimo fá-lo latir como se estivesse em sofrimento. Ou então aperta com os dentes a cenourinha de borracha de que tanto gosta, fazendo-a apitar. Abeira-se das tigelas que estão à saída da cozinha, cheira por instantes a ração, bebe água, fica com as barbas encharcadas a molhar o chão, outra corrida até à porta, regressa à cozinha para me dar pequenas mordidelas na mão, Anda, despacha-te.

Apesar de o saracotear do Clude me ir animando a manhã, continuo a precisar de tempo para me ajustar à luz e à vida. Procuro pela casa a trela, os óculos escuros, a carteira, o telemóvel, as chaves de casa, prometo que vou começar a ter um sítio para cada coisa, não parece uma tarefa difícil ter um sítio para cada coisa, por que raio não consigo?, resmungo contra mim mesma, reclamando do tempo que perco nestes meus desencontros com os objetos, e esta pequena irritação ajuda-me a ficar pronta para o mundo. Finalmente a porta da rua aberta e eis o Clude numa corrida desenfreada, a derrapar no patamar intermédio do lance de escadas, chegado à entrada do prédio, regressa escada acima, quase tropeço nas razias que me faz, abana a cauda, torna-se um desarranjo de patas resfolegante, uma mancha de pelo preto e comprido com uma língua cor-de-rosa ao pendurão.


Na rua somos um só, a trela faz de cordão umbilical. Um cordão umbilical que diariamente se reata. É ele que decide por onde vamos e que me passeia. Segue três passos à minha frente, o tamanho da trela esticada, que a cidade tem muitos perigos e se a trela fosse maior eu podia não aguentar os esticões que ele de vez em quando me dá. O Clude é um cão grande, forte demais para mim, mas isso não pode ser razão para nos desatarmos. Atrapalhando a pressa dos transeuntes que têm um destino sem enganos nem desvios, vamos parando, há que cheirar aquela árvore, cumprimentar o cão que vem no sentido contrário, e de novo a caminho em ziguezagues ébrios. Chegamos ao pequeno jardim que entristece o bairro com os canteiros mirrados de malmequeres e agapantos, passamos o quiosque onde costumo comprar os jornais, damos a volta, ouvimos dois reformados a conversar ao lado do barulho que derruba o centenário prédio cor-de-rosa, olho para o monstro agora esventrado com duas gruas-abutres à espera, avistam-se já as antigas fundações, ferros retorcidos, um amontoado de entulho, pedaços de mármore, um colchão a desfazer-se, barrotes partidos, algumas paredes continuam de pé, sobraram armários de cozinha num sítio onde já não existe chão, alguém colou autocolantes da Heidi numa das portas, há um espelho pendurado por cima do que sobra de um lavatório, estou distraída a pensar que tudo tem de desaparecer para que a cidade seja impiedosamente mais jovem, quando um puxão na trela me traz de volta, um puxão que encontra a minha mão lassa e deixa o Clude solto de mim.

Demoro frações de segundo a perceber o que se está a passar. Do outro lado da Avenida Miguel Bombarda, sentada no passeio à espera que o semáforo fique verde para os peões, está a Lua, uma cadela de que o Clude gosta muito. Entre nós e ela, três filas de carros passam velozes. O Clude espera que esta parte do nosso corpo que eu sou o proteja dos perigos. Ele é a parte da brincadeira expansiva e irresponsável, eu a da seriedade composta e ajuizada. Mas o nosso corpo partiu-se e não estou lá no outro extremo da trela que corre para a estrada, não tenho como o proteger. Grito, Não, mas ele continua, quantas vezes digo não por coisas pouco importantes, grito, Para, mas ele parece não me ouvir, talvez o barulho das obras não deixe que ele me oiça, não tenho ilusões, se ele se atirar à estrada, os carros não conseguirão travar.

A manhã, uma manhã até então igual a outra qualquer, tem agora a irracionalidade dos pesadelos.

À minha volta ainda nada é diferente, os dois reformados a conversar, os operários a demolir o prédio, os jornais do quiosque a simplificarem o mundo pendurados por molas. Chamo, quase já sem gritar, Clude, e ele estaca. Foram tantas as ocasiões em que o chamei e ele não me ligou, que não podia esperar que esta fosse diferente. Mas redentoramente foi. Talvez por haver já na minha voz mais invocação do que chamamento ou porque os nossos nomes também servem para isso, para darmos conta quando parte de nós se desprendeu e é preciso parar. Os nossos nomes, essas trelazinhas frouxas, cordinhas de nada, que nos prendem à nascença e de que nunca nos libertamos, a religar-nos aos outros.

Agarro a trela no mesmo instante em que o sinal fica vermelho para os carros, abraço o meu Clude, ponho-me de novo de pé e a vida continua.

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