O farmacêutico (ou o boticário) era o homem que sabia de que se compunham os remédios, para que fim seriam eles e como prepará-las. Bem diferente dos dias de hoje, onde farmácias e drogarias pouco se distinguem de lojas com seus caixeiros. O contato dessa rapaziada de agora com o seu público é no geral o contato polido e passageiro entre comerciante e freguês. Nos tempos de seu Joãozito menino ou rapazola, trabalhando como um noviço ou como prático, a gente da farmácia dava ao seu cliente, no vidro de remédio, muito de si mesma, de sua inteligência, de sua habilidade, de seu aprendizado e de seu calor humano, pois eram a essa altura tão grandes as incertezas da medicina e tão longos, aplicados e complicados os trabalhos da farmácia. Como que ia em cada vidro de remédio, de mistura com ciência e arte, os votos, as esperanças, a alma e o sangue do farmacêutico. Assim entre o doente e a farmácia se estreitavam os laços samaritanos, a aproximação se fazia através dos vínculos de uma avultada responsabilidade profissional.
Não fosse ainda nossa vila tão pequena, todos se conhecendo tão de perto e se interessando tanto uns pelos outros. Não havia estranhos. Mesmo os "banhistas" recém-chegados logo se sentiam à vontade. Era quase um sistema de convívio em família, a existência comum envolvendo mais um sentido de serviços mútuos que de negócios. Por isso todos trabalhavam e poucos enriqueciam. A intimidade abolia praxes e conveniências. Nada funcionava sob interesses rígidos ou horários curtos e implacáveis. O comércio fechava às nove da noite e nos domingos às três da tarde. E isso porque afinal era preciso fechar de algum modo. As farmácias, essas eram as últimas a cerrar as portas e não conheciam domingos nem feriados. Estavam como que em "sessão permanente". Não adiantava mesmo fechar, a clientela era como gente de casa e precisando vinha a qualquer hora.
Pertenceram a esse tempo a farmácia de seu Sá, ou José Antônio Augusto de Sá, a de seu Westin, ou Eduardo Pio Westin, a do seu Luizinho, ou "major" Luiz Loyolla, os primeiros farmacêuticos de que a cidade tem notícia. Eram homens ilustrados, prestantes e de íntegro caráter. Outros se lhes seguiram, como Teófilo Lobato, Leônidas Clemente Ferreira, Maurílio Figueiredo, Djalma Paiva, Artur Andrade, João Porfírio Brandão, para citar os mais antigos e aqueles cuja vida teve entre nós um maior sentido de integração e permanência. A eles todos, em cuja disciplina aprendera o seu ofício, a eles todos, por ter começado na adolescência, seu Joãozito sobreviveu. Dirigiu, como prático provisionado, a sua própria farmácia, chamada Farmácia Santo Antônio, a qual sempre foi, como ele mesmo, singela, pequena, tranquila e infatigável. Seu Joãozito estava de tal modo integrado nela como um homem num "pulmão de aço". Através dela, por ela e com ela é que ele respirava, é que ele vivia. Morava dentro dela, dentro dela passou sua existência, criando e educando sua família e suportando um trabalho para o qual não escolhia nem tempo nem hora.
Os que altas horas da noite já passaram pela angústia de precisar de remédios sabem o quanto de resistência, de bravura, de bondade e de noção do seu dever havia naquele velhinho que aparecia prontamente para atender à campainha da Farmácia Santo Antônio. Através de quantas gerações, através de quantas e quantas noites, seu Joãozito não soube o que era dormir tranquilamente! É que ele com isso tinha um lucro extra – dirão alguns. Seria decerto um ambicioso. Não. Após sessenta anos de vida em farmácia, graças a Deus esse homem honrado morreu pobre. O que o sustentava não era o lucro de ganhar, era o lucro de dar, de que apenas o seu coração se enriquecia, servindo, socorrendo, ajudando.
Deus sabe o quanto a farmácia pode ser nobre, dessa difícil e insondável nobreza das pequeninas coisas de todas as horas. Só não o sabem os que a transferiram e ainda a transferem para o bolso dos Rockefellers da indústria de remédios e a transformam num cúmplice instrumento da mais nefanda espoliação do nosso povo. A indústria de remédios foi amparada e se ergueu – diziam – para que os medicamentos, produzidos em grande quantidade, saíssem melhores e mais baratos. Deu-se o contrário. Avoluma-se espantosamente o número de medicamentos inúteis, ordinários ou maléfícos, e todos sem distinção se vendem caríssimos. Quando, no tempo de seu Joãozito, os farmacêuticos ainda manipulavam, inúmeros remédios eram melhores, a começar pelo preço.
É inelutável que se voltem as páginas ao livro do Tempo e que a história do homem a cada período altere os cenários e mude os personagens. Não se pode pretender que o mundo da penicilina e da cortisona seja idêntico ao do unguento napolitano e das pílulas de iodofórmio. O que raros perguntam, entretanto, é se todas as coisas modernas e de ordinário festejadas representam adiantamento indiscutível, melhoria definitiva e se elas valeram a pena.
Aí está na vida de seu Joãozito e no tempo em que ele exerceu a sua profissão muitas lições que não deviam caducar, mas salvar-se aos padrões renovadores, às vezes tão apressados, radicais e injustos.
É necessário que a cidade, que por sessenta anos se valeu do seu trabalho obscuro, dedicado, incessante e indispensável, não emudeça como os musgos sobre o cimento do seu túmulo, mas que se edifique na sua vida e na sua morte e tenha neste instante uma voz que pronuncie o seu nome com a veneração e o respeito, com o fervor, o devotamento e a humildade com que ele sempre a serviu. Seria uma indignidade esquecermos em Poços de Caldas esse velho vigilante da saúde. Seria falta inescusável não exaltarmos esse rijo trabalhador que, ao se fazer tão útil como pequenino e pobre, aumentou as dimensões morais de sua classe e concorreu com exemplar simplicidade para nobilitar também a nossa condição humana.
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