Era noite, o gerador da aldeia tinha deixado de roncar. Dizer que estávamos numa igreja era excessivo. O local de culto era um lugar tão oculto que nenhum deus daria pela sua existência. A sala onde estávamos – a única que existia – era o lugar do velório. As paredes dançavam à luz de velas espalhadas nos cantos da sala. O enfermeiro deu um passo em frente e dirigiu-se à minha mãe.
Susa Monteiro |
A mãe encolheu os ombros. Estava tão magra, tão vazia de corpo que receávamos pela sua integridade sempre que encolhesse os ombros.
– Não sei o que dizer, doutor, há anos que não fazemos nada.
– Entenda-me bem, dona Florinda. Há mandamentos do céu, outros da terra, a senhora sabe bem a que me refiro. São nossos costumes, não estão escritos por escrito.
– Os mandamentos conheço, mas não sei se alguma vez cheguei a conhecer o Arnaldo.
– Viviam juntos há vinte anos.
– Sou esposa, doutor. O que posso saber do meu homem?
Já só duas velas sobreviviam. A minha mãe separava-se do próprio corpo e esvoaçava em irrequietas sombras. Tive medo que desaparecesse, engolida pela parede. O enfermeiro pediu que nos retirássemos para o exterior. Longe do defunto, talvez a minha mãe ganhasse coragem.
– Pense bem, dona Florinda. Uma grave ofensa o seu marido terá cometido. Fale à vontade, estou aqui como enfermeiro e como pastor. Esse seu Arnaldo... A senhora não suspeita de nada?
Florinda hesitou, costurando os dedos uns nos outros. A medo foi rebuscando nos singelos caprichos do marido um que possa ter sido mortal. Recordou, primeiro, como ele dormia sem tirar a roupa que usara durante o dia. Os que dormem de pijama não respeitam o que foram durante o dia. O pijama é uma farda para se esconderem de si mesmos. Era assim que falava Arnaldo.
O médico não pareceu convencido. Não podia ter sido essa a razão. Seria demasiado trivial para tão extraordinário falecimento.
– Pense bem, dona Florinda. Não me faça passar um vexame. O que vou emitir, no caso presente: uma incertidão de óbito?
– O meu filho, talvez ele saiba esclarecer. Faz uma semana que saíram juntos. Viajaram não sei para onde. Voltaram diferentes, não sei explicar.
– Arnaldo viajou? Pronto, já estou a ver o que aconteceu.
– Então, meu jovem, o que nos pode dizer?
Uma derradeira vela resistia. Depois dela, a escuridão reinaria sozinha. Por isso, me decidi a falar, apressado. Lembrei o dia em que partimos em segredo, eu e o meu velho, em direção ao litoral. O pai levava apenas a espingarda. Nem água, nem pão, nem catana. Apenas a arma. Vamos para lá. E prolongava a vogal: lááááá.
O senhor sabe, senhor enfermeiro, não se fala sobre o mar em nossa casa. Respeitávamos tanto a norma que nunca a palavra “mar” foi pronunciada. Somos do interior, temos os rios e os espíritos que neles moram.
No meio do caminho, o meu pai tombou, desamparado. Ajudei-o a levantar-se, reparei que as mãos ferviam. Tenho febre, disse ele, mas não te preocupes, é só no corpo. O que se passa, pai?, perguntei. Ele respondeu que sofria de uma doença que só tinha nome numa língua que não era a nossa. Não quero que ninguém mais saiba disso, declarou. E por que razão saímos para tão longe? Sou um elefante velho, respondeu. Não quero que me vejam definhar.
Dias depois, ao final do dia, escalámos uma duna de areia e, antes de chegar ao topo, o meu pai parou, os dentes rangendo, a arma empunhada nos braços trémulos. O que vai fazer, pai?, perguntei, quase em pranto. O mar tem asas, começou ele por dizer. Quando eu morrer, o mar vai voar sobre a nossa aldeia e o sol ficará uma pedra cega, sem tamanho. Ficarão a saber que morri. Mas o que vai fazer agora, pai?, voltei a perguntar. Fica aqui, filho. Não espreites para o lado de lá, aconteça o que acontecer, não olhes nunca o mar de frente.
Acabou de dizer isto e galgou, aos berros, o topo da duna. Afundando os pés na areia, desatou aos tiros. Disparava contra as ondas, contra as gaivotas, contra as nuvens. De repente, tombou desamparado. Gemeu e logo corrigiu os meus intentos: fica onde estás! Obedeci, recolhido nas traseiras da duna. Por um momento, escutei esse grande silêncio onde moram todas as vozes. Depois, vi os braços do meu velho ancorando-se na crista da duna. Arrastava-se como um bicho e, por um momento, temi que fosse verdade a lenda dos homens que emergem do mar sem pés, sem raça e cobertos de escamas. Ajudei-o a erguer-se e percebi que sangrava dos pés. Não tive coragem de olhar mas deixávamos atrás de nós um fundo rasto de sangue. Não olhes o sangue, advertiu-me. É como o mar, não se olha.
E caminhou de regresso à vila, apoiando-se mais e mais nos meus braços. E quando, por fim, entrámos no povoado ele corrigiu os meus passos: para casa, não, leva-me para a igreja. E foi aqui nesta sala, que ele foi morrendo. Sozinho, como foi o seu desejo. Aconteceu ontem à noite. Há horas que jaz naquela mesa. E ainda o carrego nos meus braços.
No fim das forças, o meu pai me apertou as mãos com o mesmo desespero com que antes apertara o gatilho da espingarda. Ajudei-o a que se erguesse e, por um instante, parecia que dançávamos, entrelaçados. Quis falar mas da boca saiu-lhe não sei se um suspiro ou se a voz de um desses pássaros marinhos. O enfermeiro assegura que o que dele se soltou não foi senão a lágrima que lhe decepou os pés. E dentro dessa lágrima, estava o mar inteiro.
Depois de escutar as minhas palavras, a mãe ergueu o rosto como nunca antes tinha feito, entrou na igreja e, com gesto decidido, descalçou o defunto. Com a mesma determinação, estendeu-me o par de sapatos, o único que o marido tivera em toda a sua vida. São teus, meu filho. Calcei-os, mesmo sabendo que me faltava tamanho para encher as solas. Arrastei-os pela estrada até chegarmos a casa. A minha mãe entrou para o seu quarto, mas eu fiquei sentado na varanda, horas a fio sem nunca tirar os sapatos. A manhã nasceu e vi o mar voando sobre a nossa aldeia. As asas do mar roçaram-me os pés e os velhos sapatos, como duas indolentes canoas, se foram afastando de mim. Para longe, tão longe, tão dentro de mim.
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