sexta-feira, outubro 11

Centenário de João Cabral será celebrado com livro de entrevistas e coletâneas

A confissão foi registrada em entrevista à escritora e dramaturga Edla Van Steen. “Tudo o que diz respeito a mim detesto reviver. Eu prefiro não me lembrar de nada do meu passado”, afirmou João Cabral de Melo Neto.

“Ele detestava rapapés e homenagens. A vida passada dele, ele revivia em sua poesia. Acho que ele ficaria constrangidíssimo com homenagem se fosse vivo”, disse sua filha, a também escritora Inez Cabral.

Afeito ou não a celebrações, é certo que os versos cabralinos serão lembrados de maneira efusiva em 2020, ano que marca o seu centenário. Estão previstos uma fotobiografia, um livro de entrevistas e dois exemplares reunindo a obra completa na poesia e os textos em prosa. Uma coletânea bilíngue de poemas português-espanhol será lançada em novembro, na Feira Internacional do Livro de Quito.

Detentora dos direitos autorais de João Cabral, a Alfaguara ainda finaliza os trâmites para a publicação da obra completa do autor, reunida pela Nova Aguilar em 2003, quatro anos após a morte do escritor, e fora de catálogo. Segundo Marcelo Ferroni, publisher da editora, textos em prosa, incluindo discursos e ensaios, serão reunidos em outro exemplar. Os dois lançamentos devem ocorrer entre julho e agosto do próximo ano.


“Nosso desejo era ter um pedacinho da obra dele, que não está no nosso catálogo”, afirma Maria Amélia Mello, editora da Autêntica, se referindo à propriedade intelectual da Alfaguara. Ela é a responsável por “Recife/Sevilha – Conversas com João Cabral de Melo Neto”, previsto para janeiro.

A saída para driblar impedimentos legais surgiu de uma conversa com o cineasta Bebeto Abrantes, diretor do documentário “Recife/Sevilha – João Cabral de Melo Neto”, de 2003. “Ele me falou que uma parte da entrevista feita com o João não havia sido usada e que o material estava inédito”, diz Mello. Ao longo do filme, depoimentos de amigos, familiares e do próprio autor explicam a relação dele com Sevilha, onde foi diplomata entre 1956 e 1964.

Em um dos trechos inéditos, o escritor é questionado por Abrantes sobre sua relação com o idioma espanhol. “Por que você sempre frisa a concretude da fala espanhola?”, pergunta o cineasta. “A literatura espanhola é a mais concreta que há. Foi o que me seduziu”, responde o autor.

“Ele sofreu grande influência da Andaluzia, em temas e incorporação de linguagem”, destaca o crítico Antônio Carlos Secchin, membro da Academia Brasileira de Letras. “O canto cigano, despojado, quase antimusical, a plasticidade das bailadoras do flamenco, o rigor dos movimentos dos toureiros no desafio à morte —tudo isso são exemplos de linguagens outras que ele buscou incorporar ao poema.”

O diálogo com a cultura espanhola intensificou em João Cabral um processo que começara em “O Engenheiro” (1945), com a necessidade de reafirmar uma nova dimensão do discurso lírico, calcada na objetividade, distante daquilo executado em “Pedra do Sono” (1942), seu primeiro livro.

O estilo coloquial encontra diálogo com a poesia ibérica “a um tempo severa e picaresca”, que acentuou em Cabral “a tendência de apertar em versos breves e numa sintaxe incisiva o horizonte da vivência nordestina”, apontou o crítico Alfredo Bosi, que põe o poema “Morte e Vida Severina” (1955) como resultado disso.

“A escrita de Cabral parte deste princípio: a poesia deveria nascer de um embate com a linguagem, evitando ser uma resposta ao mundo emocional ou psíquico do autor”, diz o poeta e ensaísta Eucanaã Ferraz. “A questão é: qual o acento colocado nesta questão? Cabral foi ao extremo, investiu tudo no abandono da confissão lírica em favor de uma poética concebida como ‘carnadura concreta’.”

Ferraz, aliás, é o responsável pela organização da fotobiografia a sair pela editora Verso. A ideia surgiu ao analisar as fotos compiladas para a obra que uniu as gravuras do pintor espanhol Joan Miró e os escritos inéditos de João Cabral, feita originalmente na década de 1950, em Barcelona, e reeditada no ano passado. “Estamos com mais de 200 fotos e continuamos pesquisando o material”, diz Valéria Lamego, coordenadora editorial da Verso.

Com organização cronológica, o volume traz registros com os poetas Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade; imagens em família, manuscritos e capas das primeiras edições de seus livros.

Na avaliação de Ferraz, a fotobiografia é uma forma diferente para se entender o autor de “O Rio” e “O Cão Sem Plumas”. “Ele é um poeta que responde diretamente à sua vivência nos espaços.

Daí, por exemplo, a presença em sua poesia de cidades como Recife, Sevilha, Marselha, Dacar, mesmo Londres.”

Nesse sentido, afirma o organizador da fotobiografia, recuperar a presença física de Cabral nessas cidades não “parece simplesmente uma bisbilhotice biográfica”.

“Significa registrar uma dimensão material da experiência que originou o poema. Mostraremos um João Cabral bastante múltiplo e, a um só tempo, fiel a seus temas, suas paisagens, seus personagens, como os toureiros e as bailadoras de flamenco.”

Em novembro, Quito abre as comemorações em torno da obra cabralina, com a publicação de uma antologia poética bilíngue, durante a Feira Internacional do Livro. A organização é do escritor e diplomata João Almino, com tradução do filósofo Iván Carvajal e ilustrações da artista plástica Araceli Gilbert.

“Há poemas inspirados na paisagem física e humana do país. Intrigava-me em ‘O Corredor de Vulcões’ a referência à sua janela de Quito, de onde via o ‘cone perfeito e de neve’ do Cotopaxi”, diz o diplomata.

O funcionário mais antigo da embaixada brasileira no Equador contou a Almino que, logo no primeiro dia de trabalho de João Cabral ali, o poeta pediu que fosse mudada a localização de sua mesa para que ficasse em frente àquela janela.

O escritor ainda será homenageado no Festival Literário de Araxá, em julho, ao lado de Clarice Lispector, que também faria cem anos no ano que vem.

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