Era um rito civilizado. A gente até conhecia o pobre de vista e de nome. Freguês pontual, procurava não incomodar. Passava entre uma refeição e outra. Se eram dois ou três, tratavam de se entender entre eles. O pobre vinha uniformizado de pobre. Tinha cara de pobre, cabelo de pobre, barba de pobre. Olhar de pobre. Uns olhos humildes que se voltavam para baixo. Um leve brilho só lhe era permitido quando pronunciava o santo nome de Deus.
As crianças da casa conheciam cada um dos que estendiam a mão à caridade pública. Ou familiar. Um ou outro pobre era meio tantã. Engrolava palavras, podia cheirar mal e vestir andrajos que desconheciam água e sabão. Um tipo assim aceitava roupa velha. Daí a uns dias voltava nos trinques. Melhorava o visual. Às crianças se recomendava cuidado. Caridade, sim. Mas nada de intimidade. O pobre podia estar doente. A pobreza em si não era contagiosa, ao contrário da riqueza. Mas doença de pobre era um horror.
Quando o pobre não trazia a sua própria lata, um desmazelo, a família dispunha de uma vasilha para a emergência. Podia ser um prato rachado, ou de folha de flandres. Nem o cãozinho nem o gato podiam comer nessa vasilha. Bicho de estimação é delicado, pega doença à toa. Se o pobre tinha uma úlcera, ou um defeito físico evidente e feio, tinha o cuidado de não o exibir. Nunca ninguém lhe perguntava se doía. Doesse ou não, isso era lá com ele.
Era um tempo em que se respeitava a intimidade do pobre, mesmo sem estar garantida pela Constituição. As crianças bem-educadas não perguntavam por que o pobre era pobre. Nem por que não tinha casa pra morar. Ou comida pra comer. Curiosidade tinha limite. Se o pobre cheirasse a álcool, ai dele. Há de ver que lhe deram dinheiro. Perdia ponto e até a comida, se logo não se corrigisse. Vício, não, de forma nenhuma. Bem-comportado, o pobre abrilhantava o escrínio de nossas virtudes.
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